Quarta-feira, 8 Maio

«The Night Will Fall» (A Noite Cairá) por José Raposo

A Noite Cairá (2014) é um documentário que aborda as imagens obtidas no final da Segunda Guerra Mundial pelos soldados Aliados, recolhidas com o propósito de registar para a posteridade as atrocidades cometidas pelos responsáveis Nazis. Obra sobre o poder da imagem na narrativa do Holocausto, o documentário assinado por André Singer volta a trazer para primeiro plano o tema da representação do horror dos campos de concentração. Tem sido uma questão que tem atravessado a discussão sobre o Holocausto: Claude Lanzmann, um dos principais intervenientes nesse debate, realizador do monumental Shoah e do recente O Último dos Injustos, outro dos filmes incluídos no programa referente ao 70º aniversário do final da Segunda Grande Guerra a decorrer no Cinema Ideal, tende a colocar o problema em termos absolutos. Para o realizador, a figuração do tormento dos campos de concentração está na ordem do impossível, do indizível: as imagens dos campos seriam sempre incapazes de contar a verdade.

O documentário de Singer coloca o cerne da questão no projecto do produtor Sidney Bernstein, que devido a um conjunto de circunstâncias relacionadas com a instabilidade política do pós-guerra nunca chegou a ser completado. Até hoje: no final de 2014 o Imperial War Museum regressou às imagens recolhidas pelos soldados, num importantíssimo trabalho de digitalização e restauração. Um dos aspectos mais determinantes no projecto concebido por Bernstein, e que nunca chegou a ser verdadeiramente concretizado, está relacionado com o envolvimento de Alfred Hitchcock.

As imagens recolhidas pela equipa de Bernstein seriam o ponto de partida para aquele que seria o único documentário da carreira de Hitchcock. Uma das razões avançadas para a inviabilidade do projecto prende-se com a recusa em acolher o elevado número de refugiados judeus, tanto da parte dos Estados Unidos como do Reino Unido. Perante a intensidade visceral das imagens, temia-se que o documentário não cumprisse o seu propósito fundamental – que passava em larga medida pela demonstração da dimensão dos crimes cometidos pelo regime Nazi -, tornando-se antes numa ferramenta de pressão política; sensibilizada pela injustiça atroz cometida contra o povo judeu, havia a hipótese da população manifestar forte apoio ao acolhimento dos refugiados em território aliado.

Por outro lado, e esta era uma questão primordialmente referente ao contexto do Reino Unido, haveria também o receio que a divulgação do documentário contribuísse para a desmoralização do povo alemão, frequentemente responsabilizado pelas ações do seu regime; com os primeiros sinais de uma guerra fria a poluir o horizonte político, a prioridade passavam também por evitar alienar um potencial aliado contra a então União Soviética. Em ambos os casos, é esta uma das dimensões da difícil relação entre o sentido último da história e a “imagem”, e que parece fazer eco de algumas das reservas avançadas por Lanzamnn. Singer nunca entra em diálogo explicito com o debate lançado por Lanzmann, tão pouco nos moldes em que o realizador de Shoah colocou a questão, mas o que aqui importa sublinhar é a importância de uma reflexão sobre a relação entre imagem e a (re)construção da História.

Um dos motivos de maior interesse do documentário de Singer passa pela aproximação às sugestões e instruções dadas por Hitchcock à equipa de Bernstein. Para evitar suspeitas sobre a credibilidade das imagens, Hitchcock recomendou que se utilizassem planos e sequências longas – daí a insistência nos momentos em que é possível ver as campas a céu aberto com os corpos dos judeus, com soldados nazis junto das suas vítimas. Outra sugestão foi a de demonstrar a proximidade entre os campos de concentração e povoações civis, de uma maneira ou de outra implicadas naquela tragédia.

Algumas das imagens restauradas pelo Imperial War Museum vão sendo intercaladas ao longo de toda a exposição factual de A Noite Cairá, e o que é aqui também impressionante é a “nitidez” ou “realismo” que o digital vem trazer a este imprescindível documento histórico. É que a degradação das imagens de arquivo tendem a distanciar-nos do momento histórico em que foram recolhidas: é oposto da impressão provocada pela alta definição digital e da sua relação afetiva com o espetador.

A obra não nos apresenta uma leitura do sentido último do Holocausto, mas relembra-nos da nossa proximidade histórica com o horror do Nazismo.

O melhor: A contextualização da dimensão política do documentário.
O pior: Nada a apontar.


José Raposo

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