Sexta-feira, 19 Abril

«Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)» por Roni Nunes

Já disse uma vez a atriz Mathilda May que os “norte-americanos fazem filmes como fazem guerra: não importa o saldo final de mortos”. Por alguma razão que pode, justamente, ter a ver com o facto de ser uma indústria implacável que devora como um vórtice pessoas e ideias, o certo é que as críticas mordazes a Hollywood sempre vão rendendo obras-primas. Isso ocorre desde o mítico Crepúsculo dos Deuses, construindo-se a partir daí uma lista que inclui obras como Inadaptado, de Spike Jonze, o recente e impressionante O Congresso, de Ari Folman e vários momentos esparsos e brilhantes nos filmes de Woody Allen.

A sintonia mais notória desde Birdman é, no entanto, com O Jogador, o filme de Robert Altman de 1992 com o qual compartilha uma combinação de engenhosidade e inteligência a serviço de uma crítica extremamente ácida à indústria. Aqui assiste-se a trajetória de um ator, Riggan (Michael Keaton) cujos dias de glória em Hollywood no papel do super-herói Batman (quer dizer, Birdman!) já lá vão. Determinado a restabelecer a sua carreira em moldes respeitáveis, ele decide fazer uma adaptação na Broadway de um texto de Raymond Carver (mesmo escritor, aliás, cujas histórias inspiraram Short Cuts, do mesmo Altman).

O que advém desta ideia é o despoletar de uma torrente dramática de acontecimentos baseados nas vicissitudes e egos dos demais personagens que gravitam à volta do protagonista: a filha insegura e a sair da reabilitação (Emma Stone), o ator completamente louco e genial que entra no projeto (Edward Norton), uma atriz que ele engravidou (Andrea Riseborough) e outra apavorada com a sua estreia na Broadway (Naomi Watts) – para além de um exasperado produtor (Zach Galifianakis) a contar os tostões e a tentar administrar uma sucessão de desgraças.

Mas a maior fonte de tormentos e um dos achados desta história alucinante é o fantasma do natal passado de Riggan, o próprio Birdman, cuja voz em off (e até aparições pontuais…) o tenta fazer reconhecer que quem nasceu para super-herói não chega a ator a sério. Para o seu detestado alter-ego, ele devia mesmo era tentar uma sequela do seu antigo franchise.

Quase tudo se passa num único cenário, os bastidores do teatro, onde a câmara persegue de forma inclemente os atores (do filme e da peça), flagra-os em momentos inoportunos e sufoca-os no seu egocentrismo, tudo enquadrado por um turbilhão altamente veloz de diálogos cortantes e momentos plenos de loucura.

De passagem reedita-se o ancestral conflito entre teatro/Nova Iorque/arte séria x cinema/Hollywood/arte popular (veja-se a abordagem do mesmo tema, mas na direção oposta, de Serenata à Chuva, por exemplo). No meio do caos o argumento a oito mãos (do realizador Alejandro González Iñárritu mais Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris e Armando Bo) e as criações visuais trazem vários momentos de antologia, como a sequência em que a mais respeitada e temível crítica da Big Apple (Lindsay Duncan) ameaça Riggan, num bar, de arrasar a sua peça mesmo sem tê-la visto. Por seu lado, ele devolve com pérolas como “o que um sujeito deve ter passado na vida para se tornar um crítico?”

Entre mortos e feridos, quem ganha é o espectador, premiado com duas horas de drama intenso, grandes momentos de humor e sarcasmo e uma diversidade de soluções imaginativas. Não menos importante, no elenco vislumbra-se uma (quase) insuspeita faceta de grande ator de Michael Keaton, enquanto Norton aparece como tudo aquilo que sempre se pensou que ele seria depois de um início de carreira brilhante – para além da oportunidade plenamente aproveitada por Emma Stone. Se depois do fabuloso Amor Cão, Iñárritu mergulhou numa quase insuportável onda miserabilista com os seus filmes subsequentes, com Birdman ele volta a mostrar que para ser crítico não é preciso levar o espectador ao suicídio.

O melhor: os diálogos perfeitos, o ritmo intenso, o conteúdo
O pior: alguns personagens secundários artificiais ou subaproveitados, como os de Naomi Watts e Andrea Riseborough, respetivamente


Roni Nunes

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