Quinta-feira, 25 Abril

«The Pervert’s Guide to Ideology» (O Guia de Ideologia do Depravado) por Roni Nunes

O que há de comum entre um ovo Kinder, os reclames publicitários da Starbucks e o conto de fadas da freira cantante de Música no Coração? Essencialmente, todos fazem parte de uma constelação que reúne os elementos do nosso mundo interpretados numa intersecção filosófica com o cinema. A ideia, trabalhada e apresentada pelo carismático psicanalista e filósofo esloveno Slavoj Žižek, esteve por trás do brilhante O Guia do Cinema do Depravado, de 2006 – e ressurge, praticamente sem alterações, neste novo projeto.

O que, de forma alguma e independentemente de chegar às salas portuguesas com dois anos de atraso, lhe retira o frescor. Com uma espécie de show-off à Michael Moore, mas infinitamente mais profundo em conteúdo, Žižek utiliza novamente os filmes como base para os desenvolvimentos das suas teorias.

O começo é um primor, já a partir da sua origem: em Eles Vivem, lançado por John Carpenter em 1988, o protagonista descobre num caixote de lixo uns óculos muito especiais. Mais do que ver melhor, eles permitiam descortinar a verdadeira mensagem por trás de tudo que se veicula no mundo contemporâneo – particularmente pela publicidade e pelos meios de comunicação. O resultado era uma saída forçada para o ambiente pouco convidativo da “dor da verdade” – uma recriação do mito platónico da caverna. Aliás, é uma pérola vinda do próprio Carpenter a cena em que a personagem principal anda à porrada com outro para convencê-lo a pôr os óculos!

Mas isto é só o começo: por vezes engrenando em raciocínios alucinantes, noutros a utilizar um humor ácido, Žižek vai desconstruindo as bases de um mundo que prefere, na maior parte do tempo, viver sob a superfície. Há teorias e filmes para todos os gostos, desde a justificação de como a sexualidade brejeira é a base da disciplina militar (enquanto se assiste a Nascido para Matar) ou a tese de que os cristãos são os maiores ateus do mundo (vendo A Última Tentação de Cristo). Já em Titanic fica comprovado que os ricos sugam as energias dos pobres quando estão enfraquecidos, uma ideia na base de uma obra socialmente reacionária, enquanto num terrível filme russo de 1949 se justificava o poder totalitário (ainda se estava nos tempos de Estaline) através dos mecanismos narrativos de uma love story.

Por vezes árido nas argumentações, o filósofo não facilita a vida do espectador em apenas uma visualização  – pese o estilo vibrante de montanha russa. Mas, num mundo de tanto merchandising e de mentiras institucionalizadas a darem corpo à farsa democrática, obras como esta são um sopro de ar fresco – e, dada a sua raridade, uma lufada de oxigénio para ser respirado em longos intervalos.

O melhor: inventivo como cinema e fundamental como filosofia
O pior: a quantidade de informações torna difícil a construção de um discurso coerente


Roni Nunes

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