Sexta-feira, 19 Abril

«Deux jours, une nuit» (Dois Dias, Uma Noite) por José Raposo

 

O que há de melhor no cinema dos irmãos Dardenne passa em larga medida pela atenção que dedicam às situações particulares de cada um dos seus protagonistas, numa atitude vincadamente documental e no encalce de um realismo radical (não será por mero acaso: realizaram mais de 60 documentários antes de se atirarem ao cinema e ao mundo a partir da ficção), e que nos momentos mais inspirados lhes tem permitido confrontar com alguma violência as injustiças e tragédias do mundo contemporâneo. Isto é particularmente evidente numa obra como Rosetta, (valeu-lhes a Palma de Ouro em 1999), que a partir da desafortunada condição de uma jovem rapariga que vive com a mãe alcoólica numa casa pré-fabricada num parque de campismo, lança um comentário crítico na direção das nefastas consequências de um mercado de trabalho cada vez mais competitivo e desumano. Dois Dias, Uma Noite vive muito na sombra de Rosetta, parecendo até convidar a uma leitura conjunta das duas obras.

Numa situação com contornos de desgraça, Sandra (Marion Cotillard) perde o seu posto de trabalho numa empresa de painéis solares: será despedida durante um período de baixa provocado por uma depressão paralisadora. Pelo meio, os detalhes do terrorismo patronal: Sandra poderá reaver o seu trabalho se convencer a maioria dos seus colegas a abdicar de um bónus no valor de 1000 euros. O filme ergue-se a partir desta premissa, seguindo o percurso de uma protagonista à beira de um novo esgotamento, na ânsia de tentar convencer pessoalmente os seus colegas. Conta com a ajuda do marido (Fabrizio Rongione, justamente o mesmo ator que em Rosetta desempenha semelhante papel de auxílio) e de uma outra colega: quando for assim nem tudo é mau, ainda é capaz de haver esperança.

A câmara móvel em plano fechado sobre os protagonistas, outrora sempre colada a Rosetta, e de resto um dos traços autorais dos Dardenne que salta mais à vista, dá aqui ares de uma tranquilidade que deve ser encarada com alguma suspeita. Se naquele filme anterior a instabilidade da imagem era sinal de uma fúria corajosa disposta a tudo para poder sobreviver, testemunha de um tumulto interior sem fim, o que poderemos nós dizer desta serenidade cinematográfica, que se demora no rosto de Cotillard sem pensar no tempo que se esgota? No limite, é bem possível que essa traiçoeira tranquilidade seja agora reflexo de uma Sandra embalada pela narcótica solução do Xanax, remédio neoliberal para as vítimas da globalização.

Dois Dias, Uma Noite é um filme de resistência perante a ditadura do défice e só por isso já vale a pena.

O melhor: a estrutura do filme, que permite a aproximação a um registo próximo do thriller sem nunca se distanciar de um realismo sem par. 
O pior: nada a apontar.


José Raposo

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