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«Interstellar» por José Raposo

Ao olhar para o atual panorama das grandes produções vindas de Hollywood, é possível que se tenha alguma dificuldade em explicar como é que se chegou a Interstellar. A política da casa não tem sido exatamente recetiva a cineastas que olhem para o cinema espetáculo como uma posição legítima, enquanto ponto de partida para uma experiência cinematográfica que se dirija ao espectador (na sua condição Humana), para lá das especulações demográficas e das questões de mercado.

Em Interstellar, Christopher Nolan apresenta-se como uma das exceções à regra, sendo o único realizador contemporâneo a trabalhar neste regime de produção e a acumular a realização com a escrita de argumento e produção (contado ninguém acredita!), que se propõe a pensar o mundo a partir do cinema, assim exatamente nestes termos. Mas sejamos claros: o mérito de Nolan não se deve à natureza visionária dos seus filmes (que não o têm sido), nem tão pouco a uma execução técnica irrepreensível (as sequências de ação são frequentemente incoerentes; os momentos de exposição são demasiadamente pesados, e por aí adiante). O fascínio da obra de Nolan é antes resultado de uma invulgar capacidade em saber ler as expectativas de um público que tem sido massacrado com a banalização do sentido da experiência do cinema.
Interstellar é o filme mais interessante da sua carreira justamente por contrariar ligeiramente esta lógica: é um filme visualmente impressionante, com um poder de atração avassalador (particularmente na sua relação afetiva com o espectador: é um filme de uma emotividade que ainda não tínhamos visto em Nolan) e de fortíssimas ambições artísticas. Por outras palavras, Nolan não se dirige ao espectador exactamente nos mesmos termos com que o tem feito até agora, aparecendo aqui muito mais empenhado em fazer um filme a partir da história do cinema e não tanto com base em supostas expectativas da audiência.

Aquilo que torna Interstellar numa obra singular é a forma como Nolan introduz os truques que lhe são habituais – e que são a peça basilar dos seus filmes, não contando com a trilogia do Cavaleiro das Trevas – na própria textura do filme, dando assim origem a uma união consistente entre a estrutura da obra e o seu conteúdo.

O centro da narrativa (estejam descansados que o caminho está livre: não há spoilers) tem por base uma missão ao espaço com o objetivo de encontrar um planeta compatível com a vida humana. Num futuro próximo, a Terra está devastada e incapaz de suster vida por muito mais tempo, e é para evitar a desgraçada extinção da nossa espécie que um grupo de astronautas (papeis representados por Matthew McConaughey, Anne Hathaway, David Gyasi e Wes Bentley) parte rumo ao desconhecido.

A imensidão do Universo tem aqui uma das suas representações cinematográficas mais impressionantes e memoráveis; os momentos de exploração espacial, de um virtuosismo visual raramente visto (que assombrosas as vistas de Saturno!), são encenados para lá do mero funcionalismo narrativo, não se limitando apenas a fazer avançar a história. A intensidade dramática do filme é reforçada recorrendo aos habituais “estratagemas” de Nolan (em A Origem a graça da narrativa assentava na existência de diversas camadas de sonhos, às quais um grupo de espiões conseguia aceder para roubar segredos), e que no caso de Interstellar têm base científica e são consequência da teoria da relatividade. É o fator decisivo da obra porque permite pensar no filme como um todo coerente sem artifícios que se esgotam em si mesmos: o relacionamento entre personagens condiciona a estrutura do filme, a estrutura do filme ajuda a compreender o funcionamento das forças do Universo, que por seu turno têm ressonância conceptual com as preocupações temáticas da obra.

Passa por aí também a ligação de Interstellar 2001: Odisseia no Espaço, que é o momento precioso da história do cinema que Nolan se propôs a visitar, contando assim uma história com o vocabulário de Kubrick.

Não é só garganta, portanto, a apologia que Nolan tem vindo a fazer da película de 35mm. A textura táctil da película é aliás decisiva para a leitura de uma das sequências chave do filme, quando já perto do final Coop (McConaughey) é posto à prova pela materialidade da existência e da memória. Belíssima declaração de amor ao cinema, este Interstellar.

O melhor: A forma como Nolan olha para a história do cinema.
O pior: Ainda que a narrativa seja complexa e construída à volta de teorias científicas de alguma sofisticação, há margem para que a exposição seja mais equilibrada.


José Raposo