Sexta-feira, 19 Abril

«Belle» por José Raposo

Belle, drama histórico realizado por Amma Asante (Way of Life) que tem no julgamento relativo ao horrendo massacre de Zong o seu principal motivo de interesse, segue a esteira de obras como 12 Anos Escravo (Steve McQueen) ao trazer para primeiro plano as tragédias ocorridas na época da escravatura. A novidade do filme de Asante está na abordagem que a realizadora faz à sociedade britânica do século XVIII, inspirando-se de forma assumida no imaginário literário dos romances de Jane Austen, mas centrando a narrativa numa personagem negra e atribuindo-lhe, assim, um protagonismo sistematicamente recusado por uma sociedade com códigos de conduta ostensivamente hipócritas.

A narrativa é centrada em Dido Elizabeth Belle (Gugu Mbatha-Raw, que tem aqui o seu primeiro papel em cinema enquanto protagonista), filha do capitão John Lindsay (Mathew Goode) e de Maria Belle, uma escrava africana. A educação de Belle ficará a cargo de um seu tio alto magistrado inglês, o Lorde Mainsfeld (Tom Wilkinson), e é no contexto desta sua situação que a narrativa se vai desenrolando. A realizadora procur estabelecer ligações entre a situação pessoal de Belle e os combates ideológicos que então se travavam quanto à natureza da escravatura, ainda que para isso tenha dado carta branca a um revisionismo histórico de justificação duvidosa (nem a Belle histórica recebe avultada herança como sucede no filme, nem o Lorde Mainsfeld terá sido sempre tão benevolente para com a condição dos escravos). Na casa dos Mainsfeld vive também Elizabeth (Sarah Gadon), uma prima de Belle, e é do contraste da posição social em que ambas se encontram que são colocadas em evidência as hipocrisias de uma sociedade britânica que ainda são capaz de ter alguma coisa a dizer em relação aos dias de hoje.

Asante procura articular um conjunto de lugares comuns do cinema de género com longa tradição, mas a sua leitura das nuances do melodrama de época e do drama judicial, ou ainda a aproximação à questão da representação das relações sociais no contexto das artes plásticas, acaba por se revelar demasiadamente superficial, roçando a momentos uma banalidade que só pode fazer lembrar a ligeireza televisiva. Para isso, contribui também uma cinematografia digital incapaz de se servir das possibilidades dramáticas e expressivas dos ricos interiores da mansão Mainsfeld e onde a ausência de qualquer vestígio de profundidade de campo acaba por prejudicar gravemente o trabalho dos atores.

Quando Asante coloca em cena o momento da pintura de um quadro (cuja autoria é geralmente atribuída ao pintor alemão Johanna Zoffany) no qual Belle e Elizabeth aparecem retratadas lado a lado, compreende-se imediatamente o tipo de filme que Belle poderia ter sido, mas que Asante foi incapaz de realizar. Fica-se com a sensação de que poderia haver aqui muito mais cinema, ainda que isso não implique que o esforço de inscrição histórica da parte da cineasta tenha sido em vão. Que só agora alguém tenha tido oportunidade de trazer para cinema a história de Belle deveria ser por si só motivo de reflexão.

O melhor: Finalmente, Belle no cinema.
O pior: as características do digital não foram colocadas ao serviço das exigências de um filme de época.


José Raposo

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