Sábado, 20 Abril

«Gone Girl» (Em Parte Incerta) por Hugo Gomes

Observem com atenção, é que por vezes nem tudo o que parece é! Esta é a nota retirada em Gone Girl (que ganhou por cá a ridícula “tradução” de Em Parte Incerta), um thriller que salienta as qualidades já demonstradas por David Fincher, um dos homens que durante muito tempo foi estampado com previsível título de “o herdeiro de Hitchcock”. Baseado num livro da autoria de Gillian Flynn (também ela autora do argumento), este é um filme que atua como faca aguçada na sociedade norte-americana, cada vez mais controlada pelas aparências e pelo julgamento em praça pública, com particular alvo a contribuição voraz e irracional dos medias.

A premissa de Em Parte Incerta soa simples ao primeiro olhar. Nick Dunne (Ben Affleck) depara-se com o misterioso desaparecido da sua mulher, Amy (Rosamund Pike), o qual está casado há cinco anos. As buscas seguem-se incansáveis e a população local demonstra solidariedade para com o caso mas, após dias sem sinal da pobre mulher cresce, não apenas na localidade, mas pelo resto do país, uma suspeita quanto à veracidade do marido de Amy. Nick começa a ser alvo de uma “caça às bruxas” liderada pela comunicação social e reafirmada pela opinião pública. Para além de concentrar os seus esforços em encontrar a sua mulher, Nick terá que acima de tudo provar a sua inocência, mesmo que os indícios evidenciam o contrário.

O filme serviria corretamente como um complemento à Beleza Americana, de Sam Mendes. Numa jornada de dissecação da matriz social norte-americana, o cineasta compõe assim uma orquestra crescente de suspeita, envolvendo o espectador e conduzindo-o cegamente para os eventuais twists que o filme terá. Confessa-se que este exercício algo formalizado do género enceta-se de forma irregular e o sarcasmo imposto por Fincher é simbiótico com a leitura de Flynn. Porém, o choque inicial é demasiado forçado e teatralizado. Talvez resultaria melhor em versão literária que cinematográfica, mas logo cedo o celebrizado realizador de Clube de Combate e Se7en contorna a situação, esboçando uma narrativa alternada e catalisadora às surpresas que aguardam. A obra adquire assim uma medula empestada com um tom demasiado negro, algures entre o humor do género, mas sobretudo alicerçado num ponto de vista cronista e implacável na sua requisição crítica.

Quanto ao elenco, Ben Affleck é a marioneta perfeita de Fincher neste conto que muito bem poderia ser “metaforicamente” autobiográfico (“apedrejado” em praça pública é com ele). A falta de expressividade e a espontaneidade do ator resulta na transmissão da ausência de empatia da sua personagem para com o espectador (curiosamente, desaparecimentos já parecem fazer parte de Affleck, visto que a sua primeira obra realizada foi o controverso Vista pela Última Vez…). Quanto a Rosamund Pike, a sua personagem é uma das figuras cruciais, assim como seu empenho, dinâmica e cortante, e Neil Patrick Harris (o sempre referenciado Barney da série televisiva How I Met your Mother) converte-se num curioso psicopata “fincheriano”.

Ao som da omnipresente banda sonora composta por Trent Reznor e seu partner nas empreitadas cinematográficas, Atticus Ross, Em Parte Incerta resume-se, sem com isto querer dar ares de diminutivo ou limitação, a um thriller negro e ofensivo, de contornos quase nórdicos, que há muito o panorama cinematográfico norte-americano testemunhava. David Fincher confirma mais uma vez que é um dos melhores a operar na grande indústria e um dos mais atmosféricos autores do filme “neo-noir“. Deliciosamente negro!


Hugo Gomes

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