Sexta-feira, 19 Abril

«Alentejo, Alentejo» por Paulo Portugal

O documentário musical Alentejo, Alentejo sublinha na justa medida a candidatura do cante alentejano a Património Imaterial da Humanidade. E só não compreenderemos a iniciativa de Sérgio Tréfaut, numa pequena metragem de 10 minutos enviada à UNESCO, se de todo desconhecermos o “cante”, o seu significado e o inegável impacto cultural. Algo que fica de imediato superado com o valioso e absorvente documentário Alentejo, Alentejo.

Se é verdade que o fado tem o destaque que merece, percebe-se aqui em menos de 90 minutos como nas raízes deste canto coral do baixo Alentejo repousa um património e uma memória tão ligada à terra que nos deixa um aperto do peito.

Seja numa sala de cinema, onde vi o filme, na sala da Casa do Alentejo, onde tive a oportunidade de estremecer diante da corrente de emoção de um grupo coral, ou até, desejavelmente, à roda de uma mesa tendo por perto um copo de tinto, um naco de pão e chouriço. Indiferentes é que não ficamos.

E indiferentes não ficámos com a evocação cultural e artística que Sérgio Tréfaut fez da memória e do som que foi saindo das bocas dos trabalhadores agrícolas que ao cantarem lá superavam a fome e a miséria. “Enquanto cantávamos éramos felizes“, diz uma idosa que recorda as noites embrulhada em sacos de batatas, que tomava banho nua nas chuvadas e partilhava com a família uma sardinha negra.

É assim, com depoimentos de diferentes gerações e a evocação das vivências mais básicas da natureza humana, que vamos entrando no cante e a sua técnica. Vamos percebendo as nuances, o respirar quando ainda se canta, a alternância do ponto com o coro, a resposta do alto, as pausas e as deixas. Sempre num andamento lento e monótono. O filme até começa com a “Grândola” de Zeca, e o marchar na gravilha dos exércitos de trabalhadores. Mas evolui logo para o lado mais folclórico na participação de um grupo num evento promovido por uma grande superfície, para nos deixar depois com o seu lado mais verdadeiro, algures numa taberna. E é aí que a câmara do Sérgio se intromete, captando perto as diferentes interpretações, as nuances de cada um.

Outra coisa que aprendemos em Alentejo, Alentejo é que não é o dote vocal, o estudo artístico que mais importa. Mas sim o sentimento. O que não exclui as regras, já se sabe. Importará talvez mais a comunhão do grupo em redor de uma mesa, quem sabe depois de uma açorda ou uma sopa de beldroegas.

Se pesquisarmos a origem do cante até poderemos aperceber-nos do seu lado erudito, de uma herança gregoriana ou árabe. Mas vá-se dizer isso aos camponeses da monda, do varejo que aprenderam a cantar com os mais velhos. Depois mesmo de um declínio deste género musical, fruto da mecanização da agricultura, percebe-se como brotam novas gerações que não têm vergonha de assumir o cante. E será mesmo com a entrada deste nova geração, quando estamos já dentro do cante, que o filme adquire um novo fôlego e este género musical uma renovada pertinência.

A certa altura, alguém dirá: “O cante está no nosso ADN”. E é precisamente esse ADN, a alma que Tréfaut buscou neste documentário. Como já fizera com aquilo que une os emigrantes captados em Lisboetas (2004) mas também com todos aqueles que escolhem viver no cemitério feito urbe no Egito, de A Cidade dos Mortos (2009). A grande diferença para os outros documentários do realizador é precisamente a função adicional que a música tem em nós. É um chamamento profundo, arrepiante e arrebatador. O resto também lá está.

O melhor: Escutar algumas modas com o peito apertado. Mesmo sem o vinho e os petiscos.
O pior: Mesmo que não venha a ser Património Imaterial da Humanidade, “já o é”, como diz o Sérgio.


Paulo Portugal

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