Para quem está familiarizado com a carreira de Luc Besson, sabe que ele celebrizou-se na reinvenção do género de filme de ação nas décadas de 80/90, em alguns dos melhores nesta categoria como O Último Combate, Léon o Profissional ou o mais otimista O Quinto Elemento. E é sem hesitações que afirmamos que volta a reinventar (e a maravilhar) com este seu último trabalho.

Lucy retrata a jornada da personagem homónima (Scarlett Johansson, sempre a surpreender) que, após ser raptada e servida de transporte de uma droga escondida nos seus intestinos, adquire capacidades sobre-humanas, evoluindo gradualmente o uso do seu cérebro dos “habituais dez por cento” para um domínio total e arrebatador. Resta-lhe desmantelar a rede de tráfico que a usou, mas, mais do que isso, transmitir todo o conhecimento científico adquirido e respostas aos mais antigos enigmas da Humanidade a um investigador, letrado na área do cérebro humano (Morgan Freeman).

O que surpreende no mais recente filme de Besson não são as habituais cenas de pancadaria e perseguições (que, de facto, tem) a que o realizador já nos habituou, mas a maneira perspicaz pela qual este se serviu da edição (da autoria do próprio) para entrecortar a narrativa com segmentos belíssimos da vida animal que relembram (espantem-se com a referência) esse cineasta polarizador que é Malick. Mas não é só no elo entre Homem e Natureza que se assemelha ao referido artista. Lucy levanta questões filosóficas, físicas e metafísicas que englobam em simultâneo o conceito de tempo, Heisenberg, Darwin e a fragilidade da própria matemática, fazendo-o, a par de Cloud Atlas ou O Cavaleiro das Trevas, um dos blockbusters mais inteligentes e cativantes que vimos nos últimos tempos.

Mas há mais que isso nesta obra. Perdoem-nos a redução do artigo a uma questão de género, mas Lucy é um filme verdadeiramente feminista, nunca se servindo de moralismos extremos ou enfadonhos para transmitir as suas variegadas mensagens. A personagem de Johansson assume uma postura defensiva e heróica, mas não sem antes ser fortemente espancada e mutilada. Torna-se mais determinada, astuta e cordata que qualquer personagem masculina com que se cruza, deixando o uso do corpo (de que se serve na cena em que surge) para prevalecer o da mente no alcance dos seus fins (a única componente que usa no clímax). A relação mestre/aluno habitual do cinema deste realizador (como em Léon e O Último Combate) toma, pela primeira vez, a mulher como a personagem que tem muito a leccionar. Com o desenvolvimento das suas capacidades, aos poucos, a protagonista perde a capacidade de sentir, mas é-lhe conferido um carácter messiânico (mas não comovente) raramente retratado.

Nas componentes técnicas, apesar dos desempenhos de Johansson e Freeman, é lastimável o desaproveitamento desse magnífico ator coreano que é Choi Min-Sik (conhecido pelos formidáveis Oldboy e Nameless Gangster), apenas vilão de serviço sem grande profundidade. Há, mais uma vez, um bom trabalho de edição, mas uma fotografia e mise-en-scène formalistas que Besson já explorou melhor.

Se está à espera de um novo Sem Limites, ilude-se. À parte da premissa, o caminho que a película segue é divergente, mais frenético mas também reflexivo. Lucy é descendente de 2001: Odisseia no Espaço (o início e uma cena em que o olho de Johansson adquire várias formas são pequenas homenagens aqui contidas a essa obra), do já referenciado Malick, Nolan, Akira e da trilogia Matrix. O espectador pode apontar como problemática a autenticidade científica mas, mesmo que o uso total do cérebro não implique viagens no tempo ou capacidades telecinéticas, este é apenas um ponto de partida para um espetáculo introspectivo que nunca se vê presunçoso. Insistir nesse ponto é perder uma obra que tanto tem de entretenimento como de epistemológico. E por isso, Lucy não é só o filme de ação feminista do verão ou a película sci-fi pseudo-intelectual da temporada. É também o melhor trabalho de Besson em muito, muito tempo.