Quarta-feira, 24 Abril

«The Tribe» (A Tribo) por Paulo Portugal

“Plemya” (“The Tribe”) é o tal filme ucraniano que promete andar nas bocas do mundo. O mesmo se diga do realizador Myroslav Slaboshpytskiy, com esta fulgurante e multipremiada estreia em formato de longa metragem, apesar de contar já com algumas curtas curiosas. E espanta não só pela premissa formal de nos sugerir uma história sem diálogos ou legendas e ter até a desfaçatez de propor uma redescoberta da linguagem do cinema com um cast integral de não atores surdos estreantes.

Antes ainda do sucesso em Cannes, onde arrecadou três prémios na Semana da Crítica, já o Jorge Pereira do C7nema me alertara para o seu potencial. Acabei, no entanto, por só o ver em Karlovy Vary, ainda que em versão screener e a correr.

Foi então em Erevan, na Arménia, que desfrutei destes avassaladores 130 minutos até ao trucidante final. Entretanto, “The Tribe” soma e segue: após conquistar em Erevan o Golden Apricot, o prémio principal, bem como o prémio FIPRESCI, acrescentou ainda este fim de semana com o prémio principal do festival Motovun, na Croácia.

Seja como for, aqui não corremos o perigo de ficar ‘lost in translation‘, mesmo sem o conhecimento da linguagem gestual. Não só essa ausência de palavras não esvaziou o filme, como pelo contrário o tornou mais expressionista, plástico e com uma pesada carga emocional. Mesmo sem conseguirmos seguir a história de fio a pavio, o que acaba por ser um risco assumido, mas de igual medida em comunicação. Algo que acaba por ser sublimado pela compreensão – leia-se opção formal – de seguir os longos planos sequência permitindo uma eficaz descrição de personagens e até um coerente fio condutor de interpretação para os atores. Temos então as ações e emoções a falar mais alto que as ações.

Apesar de tocar levemente a estrutura do cinema mudo, The Tribe não integra esse conceito. A esse propósito, seria o próprio Slaboshpytskiy a confessar-me as suas influências em entrevista. Aí refere que uma das suas principais influências foi mesmo o filme Tabu, de Miguel Gomes. Desde logo pela forma como lidava com os códigos do cinema mudo. Em todo o caso, o ucraniano de 40 não é estranho ao género, pois em 2010 levou ao festival de Berlim a curta “Glukhota”/”Deafness” num curioso ensaio que acabou por estar também na génese de “Plemya”.

Logo no início percebemos o primeiro desafio. Após dos créditos que anunciam essa ausência de diálogos e legendas, o som de trânsito impõe-se numa longa sequência em que um jovem pede a uma transeunte direções com gestos para a instituição de surdos onde irá viver. A câmara imóvel observa a cena à distância e leva-nos a seguir Serguey, a personagem de Grigoriy Fesenko, um jovem que o realizador disse ter tirado da rua e da má vida. Logo na apresentação da aula de cultura europeia conhece os elementos problemáticos que introduzirão às praxes violentas e aos códigos do submundo daquela instituição. Gradualmente, acabará por impor-se e entrar mesmo no anel de prostituição e proxenetismo dirigido por um professor local regulando ainda uma rede de emigração para Itália.

Após uma escaldante cena de sexo ocasional com Anya (Yana Nokikova), uma das jovens que se dedicavam a satisfazer sexualmente os camionistas locais (com Svetka, interpretada por Rosa Balby), o jovem acabará mesmo por a engravidar, gerando uma extrema sequência de aborto improvisado, em mais uma nova sequência de altíssima entrega de Novikova. De salientar o nível muitíssimo relevante desta dupla sem qualquer experiência.

Kudos ainda para a estética visual trabalho do filme, graças ao trabalho do DP Valentyn Vasyanovych, também ele debutante, exímio na escolha dos grandes planos em widescreen, aos planos sequências e até as diversas cenas de elevadíssimo recorte emocional ou violência.

Apesar de Slaboshpytskiy ter rendido parte da crítica a seus pés, The Tribe deixa ainda material suficiente para calorosas, seguramente apaixonantes, debates de opinião. Seja a opção formal de longuíssimos planos sequência, da opção da duração acima dos 120 minutos ou mesmo de alguma violência exacerbada sem a devida justificação. E foi até no meio dessa diatribe que fixei algumas ideias sobre os inúmeros méritos de The Tribe. Seguramente, um filme que enche as medidas, sendo que um dos elos mais fortes será o facto de se nos agarrar à memória e não a largar. Não como aqueles que deixam boa impressão, mas que delicadamente se desvanecem.

O melhor: A opção estática que permite ultrapassar os limites do cinema
O pior: O arrojo dessa opção deixa também à vista algumas das suas limitações, sejam elas assumidas ou não.


Paulo Portugal

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