Sexta-feira, 29 Março

«La jalousie» (Ciúme) por Duarte Mata

É bastante memorável a tradição do amor no cinema francês. O amor, mas também o ciúme, como no caso de alguns dos melhores filmes de Truffaut (Angústia; Jules e Jim; A Mulher do Lado) ou de Godard (Masculino, Feminino; O Desprezo). Filmes muito pessoais e característicos que, numa simplicidade pouco romântica e sincera, conseguem fazer retratos originais e lúcidos dos atritos relacionais que surgem no quotidiano, qual teatro introspectivo onde um personagem representa os seus vários papéis herméticos. Com Ciúme, o mais recente trabalho de Philippe Garrel, essa tradição mantém-se firme.

Dividido em duas partes, “Mantive os anjos” e “Fogo na Pólvora”, Ciúme retrata a decadência amorosa de Louis, um pequeno ator na casa dos 30 (Louis Garrel, cada vez mais próximo de ser o Pierre Léaud da sua geração) que tenta arranjar um emprego para a sua atual namorada, Claudia (Anna Mouglalis). Charlotte, a filha do primeiro (a pequena e curiosa Olga Milshtein) admira a segunda, o que provoca um dos ciúmes do título na mãe da pequena (Rebecca Convenant), abandonada por Louis. Frustrada com o falhanço do seu amante, Claudia trai-o com um homem que lhe poderá dar a segurança e a independência financeira que precisa.

Sobre relações. Amantes, pais e filhos, irmãos, professores e alunos. Que podem levar à morte ou à esperança. Os fragmentos despedaçados com que as pessoas são feitas, a dor da perda e da sinceridade. A felicidade que pode estar num passeio num parque em família, ou o tormento de ouvir a filha dizer que a nova namorada do pai é “bestial”. Eis como definir o objeto raro que de que estamos diante.

O filme desenvolve-se num preto-e-branco melancólico (como Os Amantes Regulares, um dos anteriores filmes do cineasta), filmado manualmente, numa precisão quase perfeita do diretor de fotografia Willy Kurant (responsável por anteriores trabalhos de Garrel, mas também por filmes de Pialat e Godard). O método de trabalho generoso do realizador – trabalho da cena nos ensaios, no plateau, e, por fim, depois de definidas as posições de câmara, o que resulta em takes únicos e raramente repetidos – atribui resultados satisfatórios, uma produção rápida e independente que não deve ser subestimada, dando o espaço mais que necessário para os seus atores se exprimirem e até mesmo improvisarem. De notar também a banda sonora íntima e variegada, da autoria de Jean-Louis Aubert, que confere uma sensibilidade adicional a cada cena que apoia.

Embora o argumento tenha sido escrito a oito mãos, é nas imagens que reside a poesia deste filme como, por exemplo, numa cena da primeira parte, onde uma mulher lava os pés de um idoso, quadro que o cenário bíblico já nos habitou mas que não deixa de ter a sua peculiaridade na história de um homem que não procura a expiação dos pecados do amor, mas sim é esta última que o encontra.

Por ter vários pormenores biográficos da família do realizador (o seu filho interpreta uma personagem baseada no seu pai; a criança do filme representa o próprio Garrel), este filme torna-se um convite para conhecer um artista e a sua opinião da cadeia de proximidades capaz de se estabelecer numa vida angustiada, o qual não quer ser recusado. É na família, diz-nos Garrel, que reside o amor incondicional. Nostálgico pelos mestres a quem presta homenagem, é o mais perto que tivemos recentemente desse espírito da Nouvelle Vague que muitos contemporâneos franceses tentam imitar, mas raros são os que o conseguem.

O melhor: A temática das relações e das suas fragilidades, a par de uma fotografia monocromática notável.
O pior: A debilidade da câmara tremida em algumas cenas.


Duarte Mata 

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