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«The Lunchbox» (A Lancheira) por Nuno Miguel Pereira

Em Mumbai existe um eficiente sistema de entrega de lancheiras que envolve a confeção das refeições, trabalho dado à mulher, e a distribuição das mesmas nas moradas exatas. Este sistema é considerado quase infalível. Certo é que, caso fosse mesmo infalível, não teríamos filme. Aqui, um engano incomum leva a uma troca de moradas, o que faz com que a lancheira de Ila (Nimrat Kaur) vá parar a Sanjaan Fernandes (Irrfan Khan) e tudo parte daqui…

Em primeiro lugar, Ritesh Batra – um realizador que deambula entre a realidade e o documentário – consegue captar na perfeição todos os pormenores no ambiente físico (a cidade, os comboios e autocarros lotados, a pobreza que se confunde com a paisagem) e o contexto ideológico da India, como o sexismo vigente que confina a mulher a um papel de dona de casa.

Por outro lado, consegue captar algo impensável na sociedade mais ocidental: A existência de felicidade no meio de tanta pobreza; fazendo um paralelismo, consegue-se aproximar do ambiente de Quem Quer ser Bilionário (de Danny Boyle), mas um pouco mais realista.

Depois, e saindo do campo documental, funciona como um retrato paradoxal sobre a solidão humana. Este paradoxo tem que ver com a ironia de numa sociedade com 1,237 mil milhões de habitantes haver espaço para tanta solidão. Neste caso, este sentimento é bipartido por dois personagens, unidos pelos bilhetes que vão trocando dentro da lancheira: Ila; que representa quase uma classe, de uma mulher que, apesar de um marido e uma filha, se sente profundamente só, encontrando o único conforto nos bilhetes que troca com Sanjaan que, após perder a mulher, parou no tempo, perdendo um pouco o sentido da sua existência.

A este duo existe ainda espaço para Shaikh (Nawazuddin Siddiqui), alguém que dá algum sentido, em conjunto com Ila (numa dimensão mais platónica), à vida de Sanjaan.

Entramos então na fase do sonho e da ilusão, numa sociedade que nunca os permitiu sonhar. Se é bem verdade que esta parte é, por vezes, excessivamente romanceada, com a existência de um amor platónico algo denunciado, também é certo que o filme tem preocupações bem maiores que isso, tornando-se uma espécie de documentário representativo de uma sociedade.

Para esse efeito, Nimrat Kaur e todas as atrizes presentes na obra servem para desmistificar a ideia de que é proibido ser sensual fora da gama americo-europeia. A verdade é que apesar de contida, Nimrat expressa toda a sua sensualidade na forma como representa a sua personagem. De uma maneira completamente diferente, mas igualmente competente, destaca-se o experiente ator Irrfan Khan, criando uma personagem profundamente amargurada e mergulhada numa solidão da qual grita por sair.

De forma geral, A Lancheira é bem mais que um filme, é um ensaio cultural sobre a India, com espaço para uma história verdadeira de amizade, numa sociedade que apesar de sobrelotada é profundamente solitária.

O Melhor: Mimrat Kaur e a dicotomia documentário/ficção
O Pior: O excessivo romanceamento da díade Sanjaan Ila, ainda que por breves instantes.


Nuno Miguel Pereira