Sexta-feira, 26 Abril

«Noah» (Noé) por Hugo Gomes

Quem imaginaria que Darren Aronofsky iria pegar na popular história bíblica, a Arca de Noé, numa adaptação livre e quase “arraçado” ao blockbuster? Pois bem, até o realizador de Requiem For a Dream: A Vida não é um Sonho e O Cisne Negro se rende à megalomania da industria, operando como um “tarefeiro” para esta galinha dos ovos de ouro. Contudo, até o feitiço se virou contra o feiticeiro, visto ser difícil controlar tamanho ego artístico. Aronofsky lutou contra as rédeas impostas pelo estúdio e o conceito de agradar a gregos e troianos.

Tendo de momento uma relevância ímpar no cinema norte-americano, o realizador viu na história do homem que responde ao apelo de Deus em construir uma arca para as suas criações, de forma a resgatá-los de um iminente apocalipse, uma forma de provocar e idealizar algo que para muitos é sagrado. Sob o medo da incompreensão, Noé decorre num mundo quase que alternativo, uma espécie de Terra Média visionada pela Bíblia que até mesmo criaturas fantásticas (gigantes de pedra?) e misticismo pagão coloca a seu dispor. Essa incógnita temporal e geográfica torna possível a inserção de rebeldias e “heresias”, capazes de irar o mais crente dos religiosos. Ainda assim, o primeiro ato ocorre da forma mais automática possível, fazendo-se sentir o fascínio dos efeitos visuais e um certo temor em consolidar o argumento do filme com a matéria-prima. Aqui sente-se a pressão do estúdio e a pouca importância do tema dada pelo próprio autor.

É no segundo acto que o espetador depara-se com algo que podemos considerar deliciosamente insultuoso: a blasfémia que se torna nos poucos momentos dignos de cinema que Noé é capaz de proporcionar. A própria Arca parece ser o catalisador para essas mesmas divagações, como por exemplo uma revelação de um Noé psicótico (Russell Crowe sai bem na “foto”) que tanto alude ao fanatismo religioso, um discurso antropocêntrico de um Ray Winstone em vias da dissecação da natureza mais negra da religiosidade e a citação de Darwinismo sob paginas bíblicas (agradável heterodoxia), uma odisseia da vida sem igual e estimulante.

Mas esse último e revigorado ato não conseguem de todo salvar um filme desequilibrado que conta ainda com uma Jennifer Connelly mais uma vez desperdiçada (em toda a duração do filme, a atriz só possuiu uma sequência que realmente demonstra o seu talento).

Noé é sufocado pelo modelo industrial e pela generalização idealista, mas foi por pouco que não meteu água!

O Melhor – O segundo ato
O Pior – O primeiro ato


Hugo Gomes

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