Quinta-feira, 28 Março

«Wadjda» (O Sonho de Wadjda) por Roni Nunes

O Sonho de Wadja chega a Portugal com um sólido currículo de façanhas – entre as quais a de ser a primeira produção inteiramente rodada na Arábia Saudita. Mas a ousadia foi ainda maior porque por trás do projeto estava uma mulher a dirigir uma equipa de filmagem numa cultura dominada fortemente por homens.

Um plano sobre os pés de alunas de uma escola rígida a recitar o Corão introduz o espectador no mundo de Wadjda, uma menina de 11 anos que, diferente das outras, não utiliza sandálias pretas sem personalidade, mas sim uns muito gastos “All-Star” da qual ela parece sentir grande orgulho. Aliás, é a partir desta qualidade, de mãos dadas com uma saudável teimosia, que ela reage e se fortalece num mundo dominado pela opressão do sexo masculino.

Esse passeio pela pré-adolescência de uma menina de Riade, onde a realizadora insistiu em filmar por uma “questão de realismo”, tem muito a revelar através dos seus múltiplos personagens: a mãe apaixonada e a viver para agradar um homem que escolhe ter uma segunda esposa, a rígida diretora da escola, as demais colegas, todas de alguma forma assombradas pelos medos decorrentes do peso normativo do Corão, que se espalha por todos os lados e a serviço dos quais elas próprias trabalham como vigilantes umas das outras.

Os pés são o elemento simbólico primordial: da ânsia de libertação das meninas que pintam as unhas à quantidade de vezes que aparecem a lavá-los como forma de purificação. A estes signos é acrescentado o óbvio desejo de emancipação feminina através do sonho da protagonista em ter uma bicicleta, um prazer completamente interdito às meninas que seguem as normas do decoro.

Poderia ser um filme cheio de raiva e desespero mas, como uma sobrevivente do seu meio, a argumentista/realizadora Haifaa Al Mansour constrói a sua história da única forma com que, eventualmente, conseguiria rodar um filme no seu país: com muita leveza, uma subtil ironia e uma capacidade que só os melhores filmes têm de, a partir de um retrato de um microcosmo, alcançar uma identificação universal.

Neste caso, essa qualidade é tanto mais interessante quando se observa que esse mundo retratado parece claramente remeter ao que, no Ocidente, se chamaria pejorativamente de “medieval”. Mas acima das superficialidades, a verdade é que, enquanto do lado de cá, muito do cinema que vale a pena debate-se sobre o vazio pós-moderno (o recente “A Grande Beleza” está longe de ser um exemplo único), por outros lados os filmes não retratam um fim de festa, mas uma enorme vontade de participar num processo de transformação.

Uma obra simples e honesta, que não tenta inventar a roda, mas que joga com perfeição com aquilo que tem – e com um final bonito e condizente.

O Melhor: a curiosidade de resgatar o cinema como veículo de transformação
O Pior: é um filme fortemente cercado pelos próprios limites que denuncia


Roni Nunes

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