Quinta-feira, 28 Março

«12 Years a Slave» (12 Anos Escravo) por Hugo Gomes

O químico e escritor italiano Primo Levi escreveu em 1947 o livro Se Isto é um Homem, as suas memórias no campo de concentração de Auschwitz que funcionou não como um detalhado retrato das suas vivências perante tal desolador cenário, mas um estudo à própria condição humana. O que leva a homens a assassinar outros homens? A catalogá-los de seres inferiores ou de retira-lhes qualquer humanidade existente? Primo Levi incutiu tais dilemas numa frieza sem precedentes, tornando não só a sua obra num dos mais importantes registos literários e memorialísticos do século XX, como também numa crucial viagem à natureza do ser humano, a sua necessidade para o mal e a incompreensão dos demais. Contudo, longe do Holocausto surge-nos as memórias de Solomon Northup, um negro livre de uma América dividida entre ideais e éticas no século XIX, cujo destino atraiçoam-no quando é sequestrado e vendido como um escravo. Tal como acontecera com Primo Levi nas suas reminiscências escritas, Solomon teve que adaptar-se, não ao cenário a que se encontrava exposto, mas à aceitação de tal destino, “abraçar” o vazio emocional até à própria negação da vida anteriormente vivida.

Nesta jornada que vai de encontro com uma América que tenta forçosamente esquecer, Steve McQueen, o realizador de Fome e Vergonha, incute uma demanda não só visualmente perturbadora, mas também a emoção. Tirando um ou outro “pico” explosivo, 12 Anos Escravo é até grande parte da sua narrativa, uma fita fria com claras preocupações na estética e nos contornos dos recursos académicos, o que é valioso pois a terceira longa-metragem de McQueen é até à data o seu filme mais ambicioso e luxuoso em termos produtivos, mas o autor consegue orquestrá-lo sem a utilização de valores classicamente pré-estabelecidos. Outro factor de perícia por parte da direcção do realizador Steve McQueen (não confundir com o actor de Bullitt e Papillon) é o uso da banda sonora, um dos portentos emocionais da obra que ecoa de forma gloriosa na sua narrativa, para além das partituras de Hans Zimmer terem tons fantasmagóricos.

Apesar do tema da escravidão e a abolição da mesma terem-se tornado numa “mina de ouro” de Hollywood, este 12 Years a Slave não é de perto nenhum Django Libertado. A verdade é que longe do jubilo criativo de Tarantino, a vingança que os afro-americanos nunca “saborearam”, a obra de McQueen assume-se como um retrato não só de uma época onde a escravidão era um negócio sustentável e essencial de uma nação, mas a sobrevivência de um homem perante o país que o traiu. Encarando tal facto, Chiwetel Ejiofor é um mártir, uma base fundamental para todo esse existencialismo, desde o desenvolvimento que consegue auferir ao seu personagem até a própria condição que consegue emergir sobre esta capa meramente cinematográfica. O ator nigeriano é também um dos vários códigos emocionais trazidos pela nova obra do realizador.

Para além dele, esta viagem por um EUA negro e constantemente exorcizado nos tempos atuais é servido por excecionais desempenhos, com claro destaque para a Lupita Nyong’o, que partilha o mesmo fardo que o protagonista, mesmo sob uma prestação tenebrosamente sofredora e de Michael Fassbender (o ator “fetiche” do realizador), aqui a personificar toda a banalidade do mal existente. Tudo graças a um desempenho sólido e psicótico que promete causar ódios e culminar em reflexões. Pena apenas que Steve McQueen quase “enfia os pés pelas mãos” quando decide inserir um debate moralmente ético entre a figura antagonista com um Brad Pitt disfarçado de canadiano. O intuito deste extenso dialogo é nobre, mas arriscou-se em tornar-se rebuscado perante a própria composição da fita. Felizmente, o realizador soube então compensar com um longo plano sequência mórbido, mas que nunca cede ao cansaço. Aliás, tal cena é de tirar o fôlego, o climax de toda esta epopeia e sim a explosiva emotividade que se ansiava.

Devido a este tormento, algures entre o artístico e a invocação de realismo no seu mais puro estudo, esgota-se o “stock” emocional, que bem poderia ser atribuído ao desfecho. Porém, e infelizmente, este escorrega perante automatismos que só Chiwetel Ejiofor consegue escapar, carregando o resto do filme até aos iminentes créditos finais. Mesmo assim, 12 Years a Slave é de facto uma viagem obrigatória e suficientemente forte para perdurar. O melhor filme de Steve McQueen.

O melhor – Um plano sequência formidável e Lupita Nyong’o
O pior – O desfecho perde emoção e a inserção do debate ético é demasiado forçado.


Hugo Gomes

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