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«Gravity» (Gravidade) por Roni Nunes

O eterno silêncio do espaço infinito assusta-me“. Pascal pronunciou esta frase há quase 400 anos, quando a ideia de um cosmos fechado, reconfortante e ordenado pelo Deus do cristianismo medieval ia cedendo lugar a outras certezas, tão fascinantes quanto terríveis: o universo não era gerido por uma plácida sabedoria divina, mas era antes uma vastidão infinita de espaço onde a Terra ocupava um minúsculo lugar. O aforismo do matemático e físico do Renascimento e as suas implicações servem bem para ilustrar o alcance poético desta obra extraordinária de Alfonso Cuarón.

Tudo se constrói de forma minimalista: dois personagens, um cenário e um enredo que se resume facilmente numa linha: dois astronautas (Sandra Bullock e George Clooney) ficam a planar no espaço, a cerca de 600km (372 milhas) da Terra, depois da sua estação ser atingida por destroços de um satélite destruído. É tudo.

Mas este não é um filme de ação travestido de sci-fi e a luta pela sobrevivência de Gravidade não passa por submeter, pelo menos num nível imediato, os seus protagonistas a uma espalhafatosa série de tormentos. Os longos planos do primeiro terço servem para introduzir os seus personagens numa espécie de comunhão entre o deslumbramento perante imagens de beleza indescritível e a iminência da sua própria extinção física. A morte, muito longe da banalização diária de toda a indústria cultural norte-americana, aparece aqui na percepção do mais puro terror – seguida de reações que tanto podem ser o desespero, a ação ou uma aceitação melancólica.

Este caráter conceitual é acompanhado de uma execução sem máculas: concebido especialmente para o formato 3D, Cuarón lega ao século XXI o mais notório e raro exemplo de conjugação entre tecnologia topo de gama e a mais pura arte. A qualidade desta construção artesanal fica ainda mais óbvia numa das mais brilhantes edições sonoras de que se tem notícia – que, como habitualmente, é coassinada pelo cineasta.

Um aspeto certamente menos notório, mas igualmente relevante, é o facto do realizador mexicano despir o filme das propagandas habituais fazendo a personagem de Sandra Bullock passar metade do tempo em que está em cena com uma farda da Rússia, enquanto a suposta salvação dos astronautas é um satélite chinês.

Por fim, esse verdadeiro ballet no espaço chega a lembrar 2001 – Uma Odisseia no Espaço embora mais limitado no que se refere aos questionamentos de fundo metafísico que tornavam ainda mais poderoso o clássico de Stanley Kubrick. Lembre-se, por exemplo, uma das cenas mais belas do filme, quando Bullock (na performance da sua vida) gira em posição fetal a operar simbolicamente uma espécie de renascimento.

Este conceito, aliás, poderia servir de metáfora para algo mais amplo: o que se assiste em Gravidade é, não só a redenção definitiva da sci-fi, num ano em que se ousou atribuir esse rótulo à futilidade barulhenta e enervante de coisas como Star Trek de J.J. Abrams, mas do chamado “cinema-pipoca“, cujo farisaísmo juvenil leva-o a buscar permanentemente o interesse do espectador através dos excessos de decibéis e da quantidade de frames por segundo.


Roni Nunes