Terça-feira, 16 Abril

«Enemy» (O Homem Duplicado) por Fernando Vasquez

Algo de muito especial se passa no Canadá. Desde a implantação de uma série de medidas que atraíram as grandes empresas internacionais de pós-produção para o seu território, e o forte investimento do governo local nas indústrias audiovisuais, que o cinema Canadiano, e em particular no Quebeque, tem vindo a atravessar o seu melhor momento de sempre. A quantidade de produções que têm invadido o circuito de festivais, e o impacto que têm provocado, são fortes indícios de que esta é a grande potência emergente do momento no cinema mundial.

Entre muitos outros, o cineasta que mais tem dado nas vistas é Denis Villeneuve, que depois de acumular prémios em Cannes, Berlim e Locarno com curtas e longas metragens como Maelström (2000), Next Floor (2008), Polytechnique (2009) e Incendies – A Mulher que Canta (2010), aparece agora em grande estilo com a sua mais ambiciosa e brilhante obra até à data, Enemy, que apesar da sua genialidade promete polarizar audiências por esse mundo fora.

Esta adaptação de O Homem Duplicado, romance de José Saramago, narra a história de Adam Bell (Jake Gyllenhaal), um professor universitário preso a uma monótona rotina diária e, como tal, sedento de agitação. Quando ao ver um filme, recomendado por um colega de trabalho, encontra um ator fisicamente igual a si próprio, o seu mundo é autenticamente virado de pernas para o ar, sendo obrigado a confrontar o seu duplo e alguns dos seus medos e limitações, com resultados no mínimo indescritíveis.

Desde a cena de abertura, que nos faz lembrar a já lendária orgia de Eyes Wide Shut, até ao surpreendente final kafkianoEnemy é uma raridade a todos os níveis, no melhor sentido da palavra.

Ao longo de todo o filme impera uma sensação de desnorte total, cuidadosamente planeada e controlada por Villeneuve, que nos mostra um talento interminável para manipular emocionalmente a audiência. O ambiente surreal com ecos de Salvador Dali, que tempera a narrativa transformando-a numa espécie de sonho estranho, é sem duvida perturbante mas também sedutora, deixando a audiência perdida e deslumbrada em doses iguais.

A performance de Jake Gyllenhaal, num formato idêntico a Donnie Darko, é gigante e também ela surpreendente. O ator norte-americano é capaz de representar dois papéis quase paradoxais sem nunca se perder nos exageros e extremos que outros cometeram no passado, ao mesmo tempo que consegue contagiar e desorientar o público com meras expressões físicas.

Mais discretas, mas igualmente eficazes, são as representações de Mélanie Laurent e Sarah Gadon, nos papéis das respetivas esposas e namoradas dos duplos, que embora meros objetos sexuais, deixam para trás um rasto marcante.

Até Isabella Rossellini, que apesar de só aparecer por escassos instantes, sobressai, revelando que Villeneuve é igualmente apto no que toca ao controlo dramático.

O filme é pautado por uma edição e banda sonora progressiva e verdadeiramente inovadora, que inclui alguns momentos de génio, e que não nos oferece qualquer descanso, apesar do ritmo lento do desenrolar da história.

A julgar pela confusa salva de palmas do experiente público de San Sebastián, a falta de uma lógica clara e um dos finais mais insano de que há memória, este filme poderá frustrar alguns, em particular aqueles que se sentem desconfortáveis com a ideia de ceder o controlo da sua mente por completo a um autêntico louco. No entanto, os olhos arregalados e estupefactos à saída da sala de cinema indicam-nos que haverá muitos outros capazes de se voluntariar a este “abuso” com um sorriso nos lábios. Esses, sem margem para qualquer dúvida, terão em Enemy uma das mais inesquecíveis experiências de 2013.

Independentemente do resultado final uma coisa é certa, o cinema Canadiano tem agora a sua obra-prima que cimentará alicerces por esse planeta fora.


Fernando Vasquez
(Crítica originalmente escrita em setembro de 2013)

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