Quinta-feira, 18 Abril

«Only God Forgives» (Só Deus Perdoa) por Hugo Gomes

Os atos originam consequências, a violência gera ainda mais violência. Sob um jeito de tragédia grega, Nicolas Winding Refn volta a incutir o seu cinema em prol de uma imprevisível história de vingança e resposta. Só Deus Perdoa é mais um conto conduzido pela violência dos atos e de igual natureza do seu protagonista, novamente personagens frias e semi-mudas ao serviço do realizador dinamarquês que segue a maré do seu estilístico Drive (2011) para regressar a um filme puramente visual, mas que esconde nas entrelinhas a sua verdadeira essência. Não existem heróis nem sequer vilões neste retrato cru e alienado, apenas personagens ambíguas que povoam uma Banguecoque fantasmagórica, realçada graças à saturação visual e a cenários lynchianos que remetem a capital tailandesa a um labiríntico Inferno visionado por Dante Alighieri.

Um mundo espiritual e visceral corrompido pela imoralidade humana e das consequências levadas a cabo pelos peões que o próprio Winding Refn cria, estereótipos compostos por maniqueísmos distorcidos. Esboços da personalidade humana, em Only God Forgives os sentimentos incutidos pelos actos algo suicidas dos personagens são praticamente nulos, novamente invocando as influências de um cinema digno do autor, calculista, frígido e por vezes mecanizado. É o tenebroso medo pela morte, são as opressões da figura matriarcal que nos sugere um incesto dominante, é o compromisso que desafia as suas próprias éticas pessoais, tudo isto constrói em Ryan Gosling, uma imprevisível personagem fora do alcance do espectador, um dito herói refniano que automaticamente se converte num mártir nas mãos do realizador (literalmente falando). Um homem acorrentado pelo legado sanguíneo da sua matriarca (uma maldosa encantadora Kristin Scott Thomas), a libertação intrínseca deste é ilustrado como uma das sequências mais simbólicas e mesmo assim perversas de toda a fita.

Só Deus Perdoa é uma obra visceral quer em termos visuais ou no impacto que emane. Nicolas Winding Refn constrói a partir de uma premissa tão simples, como uma disputa de artes marciais, num mosaico vivo e luxurioso. Uma violência sincronizada que se torna arte sobre tela branca, o sadomasoquismo fílmico em prol do ego de um artista. O realizador conseguiu, outra vez, invocar “demónios antigos e primitivos” para aprisionar o espectador neste enredo, simples histórias que geram pinturas expressionistas, por palavras mais simples, para ver Só Deus Perdoa é preciso saboreá-lo e, após tal feito, um mundo intrínseco e singular se abre sobre nós.

Ninguém garantia que seria uma experiência acessível e de fácil digestão, por vezes os excessos que torna parte da “personalidade” da obra repugnam todos aqueles que recusam integrar carnalmente nas sequências surgidas. Recebido friamente e sob um “mar” de assobios no Festival de Cannes deste ano, este é um dos mais enigmáticos, hipnóticos e morbidamente belos do ano. Não é Drive, mas … tem alma!

O melhor – visualmente sedutor, arrepiante e Kristin Scott Thomas no seu melhor
O pior – é preciso saboreá-lo, vê-lo nas entrelinhas, se não caímos no erro de considera-lo um puro e vazio exercício de estilo


Hugo Gomes

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