Sábado, 20 Abril

«É o Amor» por João Miranda

A vida de pescador é dura. Passar a semana no mar e só voltar a terra no fim-de-semana. A comunidade de pescadores de Caxinas, na freguesia de Vila do Conde, é um desses lugares com uma vida dupla, entre o fim-de-semana patriarcal e o resto da semana matriarcal. Para conseguir filmar esta comunidade, João Canijo, cujo último filme, “Sangue do meu Sangue”, foi proposto para Óscar de melhor filme estrangeiro (não chegando, no entanto, a ser nomeado), pediu à atriz Anabela Moreira, com quem já trabalhou antes, que se inserisse nesta comunidade. Depois de um processo de casting, foi escolhida a mestra com quem Anabela iria ficar e seguir. Passadas algumas semanas, a atriz e o realizador decidiram o que iriam filmar e procuraram repetir determinadas situações para que as pudessem apanhar em câmara (não se trata, de facto, de uma reencenação).

A mestra escolhida, Sónia Nunes, é uma daquelas personagens cheias de vida e que procura fugir da velha tradição de mulher de pescador, algo de que é acusada pelas mulheres mais velhas, enquanto se procura definir dentro dos termos de uma feminilidade mais mediática. Todo o processo documental é fascinante, dando-nos uma visão de uma comunidade diferente da dos estereótipos estabelecidos das mulheres vestidas de negro a olhar para o horizonte e da pobreza extrema. Infelizmente, este processo está cortado pelas intervenções da atriz Anabela Moreira.

Há uns anos, depois do sucesso do filme baseado nele, tentei ler o livro de Manuel Puig “O Beijo da Mulher Aranha”. Ao contrário do filme, onde a narrativa flui, Puig encheu o livro de notas de rodapé que pretendem determinar uma leitura do texto por cima delas. Costuma dizer-se que as grandes obras permitem várias leituras e as notas de Puig exasperaram-me ao ponto de abandonar o livro, de tal forma o sentia rígido. Nas primeiras intervenções de Anabela Moreira em “É o Amor”, artificiosas e estranhas que destoam do resto do filme, lembrei-me do Puig e das suas notas com a interpretação já feita. Pouco a pouco, fui-me apercebendo que não era esse o caso, mas que o filme tinha sido raptado e em vez de se manter fiel ao tema que inicialmente o guiava foi desviado para se tornar num exercício de “navel gazing” e, pior que isso, com sabor a falso. Na conversa que se seguiu à exibição do filme, a atriz só falava de si própria, interrompendo o realizador, dando uma infeliz imagem de si mesma e do que poderá ter sido trabalhar com ela, convencida de que tudo se tratava de um interessante mistério sobre a sua verdadeira personalidade. Se um ator trabalha sempre com o que tem dentro de si, tem de haver alguma espécie de transformação (ou a pretensa desta) no seu trabalho; neste caso o ego do ator sobrepôs-se e deformou o filme todo.

Mesmo conseguindo compreender o que estão a tentar fazer, não percebo como não o veem falhar para com o tema original (e as pessoas nele representadas) e um exercício fútil do cinema apaixonado por si próprio. No final acabamos por ter dois filmes: um bom documentário e um “making of” duvidoso.

O Melhor: O documentário.
O Pior: As intervenções pessoais da atriz Anabela Moreira.


João Miranda

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