Quinta-feira, 25 Abril

Olhares do Mediterrâneo: “Temos que criar uma alternativa ao discurso eurocêntrico”

O festival Olhares do Mediterrâneo – Cinema no Feminino decorre entre 29 de setembro e 2 de outubro no cinema São Jorge, em Lisboa (as informações gerais podem ser encontradas aqui).

A criação do festival está ligada a núcleos universitários através do grupo Olhares do Mediterrâneo e do Centro de Rede de Investigação em Antropologia (CRIA). Para conhecer mais sobre esta proposta, o C7nema conversou com as fundadoras Sara David Lopes e Antónia Lima, que ressaltaram a necessidade da criação de um discurso alternativo ao de intolerância que os media veiculam atualmente, destacando ainda o tema dos refugiados e o das desigualdades de género na produção de filmes em ambos os lados do Mediterrâneo.

Em relação à uma das linhas do festival, de que forma vocês conceberam um projeto de cinema “mediterrânico”? Acham que esta proximidade geográfica de uma forma se reflete na cultura cinematográfica destes países e incluem Portugal?

A ideia de um cinema mediterrânico é uma construção artificial na qual cabem muitas outras definições. O nosso projeto nasceu de uma ideia de trazer ao público português filmes aos quais este, de outra forma, dificilmente teria acesso por não andarem no circuito comercial. A ideia foi crescendo e amadurecendo até o modelo atual.

Num contexto geográfico partilhado, o Mediterrâneo produziu um vasto conjunto de semelhanças e diferenças do ponto de vista social e cultural. Se pensarmos, por exemplo, do ponto de vista religioso vemos as profundas diferenças das suas manifestações neste território.

A proximidade geográfica que nos põe frente a frente enquanto margens do Mediterrâneo ajuda a construir a nossa identidade enquanto países mediterrânicos, mesmo quando esta é construída por “oposição a”. Há uma espécie de espelho que é, ao mesmo tempo, uma janela. A cada um de nós cabe a escolha de olhar para o espelho, de lhe virar as costas ou de olhar pela janela e através dela ampliar o olhar. A intenção do festival é chamar a atenção para a existência deste portal privilegiado e de podermos aprender com o conhecimento da diversidade.

Em termos históricos sempre houve uma forte ligação entre o norte da África e o sul da Europa, por exemplo. Acham que nos dias de hoje há uma ligação menor pelo facto de se estar a voltar a viver, no Ocidente, um forte discurso contra os muçulmanos?

É certo que esse forte discurso, especialmente no contexto de austeridade que se vive atualmente nos países do sul do Mediterrâneo, não contribui em nada para uma maior aproximação das duas margens. No entanto, acreditamos que pequenas iniciativas como o nosso festival podem contribuir para a desconstrução dos estereótipos que as afastam e que têm sido alimentados politicamente – no sentido de reforçar algumas das oposições, que nós pelo contrário, achamos importante esbater.

Pretendemos alargar o conhecimento que temos sobre os diferentes países do Mediterrâneo, e queremos fazê-lo mostrando os discursos produzidos pelos próprios, porque entendemos que isso permite aos espectadores um melhor conhecimento sobre as realidades e experiências de vida retratadas nos filmes.

Cremos que é importante para criar uma alternativa aos discursos eurocêntricos a que de uma maneira geral temos acesso pelos meios de comunicação social. Através dos filmes os espectadores entram na vida de pessoas concretas, conhecem os desafios, as alegrias, as tristezas dos seus quotidianos independentemente de serem cristãos, muçulmanos, ateus ou judeus. E isso pode ajudar a construir formas mais tolerantes de olhar para o outro, pois pudemos vê-lo como um ser humano como nós a viver o seu dia-a-dia.

Neste sentido impõe-se, obviamente, a questão dos refugiados – também abordado na seção Travessias.

A questão dos refugiados é, tristemente, incontornável quando olhamos atualmente para esta zona do mundo. Tendo o nosso festival por pano de fundo a produção de filmes feita em torno do Mediterrâneo, recebemos inevitavelmente muitos filmes que abordam este tema – obras documentais, de ficção, com durações variadas e múltiplos enfoques.

Sendo a Europa hoje alvo de entradas tão maciças de pessoas à procura de um lugar mais seguro para viver, é nos posto um teste ao nosso exercício de humanidade, à capacidade de nos pormos na pele do outro, de lhe estendermos a mão, com todas as consequências que isso pode vir a ter.

A outra linha diz respeito à promoção do papel da mulher no cinema. E aí, novamente, há muitas diferenças – onde o papel da mulher no Ocidente é mais estável e liberal.

Efetivamente, à semelhança da posição da mulher na sociedade em geral, o papel da mulher no cinema é bastante desigual nas duas margens do Mediterrâneo – mas de formas diferentes em cada uma delas. Essas diferenças, aliadas à menor produção cinematográfica nos países da margem sul do Mediterrâneo, vem refletida na quantidade desequilibrada de filmes que recebemos das duas margens.

No entanto, é algo que está em mudança, uma tendência que tem acompanhado alguma evolução nos direitos das mulheres na margem sul do Mediterrâneo. Isso tem-nos levado também a refletir sobre a intervenção da mulher na produção de filmes e consideramos pertinente alargar a programação que passamos a todo o papel da mulher na produção cinematográfica e não somente na realização. Isto é, interessa-nos também o olhar da mulher em áreas tão fundamentais como o argumento, a produção, a fotografia, a montagem e foi por isso que este ano seleccionamos alguns filmes realizados por homens mas que tinham uma mulher nestas áreas.

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