Sexta-feira, 26 Abril

Vitalina Varela: Renascer na Noite Imensa

 

“Este filme é para todas as mulheres que sofrem. 

Eu sofri com muita coisa. 

Se as mulheres vêem que eu sofri, 

um dia também vão ficar livres.”

Vitalina Varela

(entrevista a Joana Gorjão Henriques, 

Jornal Público, 1 Novembro 2019)

 

 

Há um grande erro que se perpetua nos discursos de superfície sobre o cinema de Pedro Costa: o de que o seu lugar é em museus. É fácil dizê-lo reparando na qualidade imediatamente pictórica destes chiaroscuros que, desde sempre, se reclamam à herança das telas renascentistas mas, se assim fosse, a emoção não teria espaço para agir. O peso no rosto de Vitalina, rompendo pela vida vivida, acontece em nós pela progressão. Rebentamos uníssonos. Não é a dor o que nos une?

 

Se Costa sempre quis contar histórias, VITALINA VARELA sublinha a transversalidade da intenção: não precisamos de conhecer a saga anterior para distinguir a moldura heróica deste retrato. No combate contra o mundo hostil, o esforço do quotidiano esculpe a resistência em traço épico. A escuridão prepara a luz e aí nasce o cinema. A economia narrativa começa na entrada daqueles pés descalços a pingar 30 anos de lágrimas e, ao breu, recortam-se os sucessivos elementos operáticos: o rosto dilacerado da mulher de meia-idade, as mãos que o trabalho enrugou, o corpo ainda ágil da sua autonomia, os lábios encerrados donde a voz já só sussurra. O espírito sai-lhe pelos olhos: a história é verídica, a dor também. Estes ‘‘duplos ficcionais de si mesmos’’ (1) persistem apesar das circunstâncias e contra elas. A coragem aqui é a de permanecer vivo e, ser mais-deus-do-que-deus e acabar com a própria vida, é atrevimento só digno de um cobarde. E Vitalina não choraria um cobarde. Ou chora? 

 

As fotografias que sobram de Joaquim não contam a história toda: a memória dos mortos talha-se pelas palavras dos vivos. Escutando sempre, Vitalina conduz a investigação sobrenatural tremendo da própria dúvida. Será que foi real essa memória dos dias felizes? Será que, ao longe, não amou senão uma ideia de amor? Aqui, no lugar onde as palavras têm força de contrato, as mentiras são como punhais. A viuvez esculpe a liberdade naquela que deixou cair a cruz que carregava. Já não anseia pelo bilhete de avião no correio, mas ainda não conseguiu largar o luto. E 30 anos de espera depois, investiga o marido que não chegou propriamente a sê-lo. 

 

 

‘‘Tinha a cruz de Cristo nos ombros, não me podia mexer. Quando caiu, fiquei livre.’’

VITALINA VARELA

 

 

Tal como Vitalina, sou toda da atenção: a recorrência de signos [como a cruz em evocação do catolicismo fervoroso, unida ao lenço branco que usará lá para dia incerto], dispõe a iconografia emocional de um presente com hipótese de futuro. Da mesma forma que cada plano vale por si e pelo conjunto, o filme decalca este percurso biográfico sem deixar de comunicar com o ciclo das Fontaínhas: as insígnias do cinema de Costa são o cenário em que vemos regressar Ventura, metamorfose frágil da idade e da doença. Voz do deus ausente, Ventura é hoje menos herói do que ontem: tombou de desencanto. I’ve lost the spirit, dizia o padre que já desistira, ”tão homem quanto os outros”, nas Vinhas da Ira de John Ford. Por contraponto, a coragem de Vitalina está ali, na força bruta de quem chegou ontem da origem (verdadeira juventude em marcha) e resgatou deste padre o espírito que lhe sobrasse porque precisava de uma missa pelo meu marido e por mim. Noutra reminiscência de Ford, uma inesquecível Vitalina como Maureen O’Hara (The Quiet Man) contra o vento, contra os seus fantasmas, reparando o telhado, reparando-se a si. Enquanto isso, Ventura bamboleia as suas manifestações mediúnicas, entre o escombro balbuciando pós-mensagens dos seus mortos e pedindo por todos.

 

 

 

”Era uma noite imensa.” A evocação, a oniria e o flashback com que CAVALO DINHEIRO entrançava passado e presente, são aqui suplantados pelo negrume literal de um pesadelo que se adensa, enredando na noite. E o Cabo-Verde que se deixou reluz sob o sol como um oásis, adourando a memória ou a imaginação. Não há nada para ti aqui, volta para a terra: o conselho das compatriotas que a recebem nos braços é ecoado pelo descontrolo de Ventura, que descrê como quem carrega a escuridão do bairro. Será que aqui é sempre de noite?

 

Reúnem-se pela ruína estes lugares, estes rostos, estes corpos: lamentamos a juventude ida, esse amor de que não resta nada, as palavras ocas, as fotografias esvaziadas, os sentimentos insuficientes, as cartas nunca enviadas. A recordação transforma-se num último combate: as perguntas sem resposta ecoam entre as paredes raquíticas dessa casa por acabar. A casa, então metonímica do casal, está a ruir porque só conta com as mãos de trabalho de Vitalina. Mas o amor é a coisa mais importante da vida, repete Vitalina apesar do coração destroçado, e a vida indicia-se, subreptícia. O som é o documento, inscrição do bairro da Cova da Moura na sua agitação costumeira, entre cães, crianças, televisores altos e música súbita que nasce dos recantos. A esperança, afinal? 

 


 

 

VITALINA VARELA é tanto a transfiguração pessoal do luto, como o estado dolorosamente desperto que põe em cena um pesadelo geracional do pós-colonialismo. Confundem-se com a noite estes zombies de Tourneur, espíritos perdidos no vagueio dos desapossados, pela calada cultivando a terra que tornam sua: a vida vence. A medida da ocupação equivale, portanto, à da justiça: aqui as casas são feitas pelas mãos dos que as habitam, como as hortas são terras ocupadas pelos que as cultivam. Fora dessa capela de cadeiras vazias, o culto adquire duplo sentido: cultiva-se e reza-se em simultâneo, unindo corpo a espírito e relacionando a liturgia com as necessidades mais basilares da vida, contra a morte que, dia-a-dia, espreita.  

 

E se esta autonomia age como uma política prática, é simultaneamente uma missão que os reúne enquanto povo, assunto que inquieta o pastor Ventura. À procura da visibilidade para os seus (que sejam vistos aqui como são vistos na sua terra), é a luz literal o que almeja e alcança, contra o negrume que contamina. ‘‘Os homens nasceram das sombras’’, aí explica Ventura, numa parábola de redenção e depois, já de dia, traz Vitalina pela mão. Troca por troca: se este lhe ensina o português que a acultura, ela reensina-lhe o fôlego da vida, como quem transporta a chama de Cabo-Verde para as hortas daquele subúrbio. 

 

Depois de uma espera de 30 anos, Vitalina foi arrancada aos vermelhos da sua Casa de Lava e caiu sem língua na terra europeia que em nada se parece com a Europa prometida. Mas dela sabe brotar a vida, porque a natureza é o primeiro trabalho dos homens. Abrigo, alimentação, agasalho: humana como os primeiros, Vitalina agarra a sua condição com as próprias mãos e, confundindo o filme e a vida, consta (2) que até tricotou uma camisola de malha para espantar o fastio festivaleiro em Locarno, enquanto recebia e não recebia um Leopardo por Melhor Actriz 2019. Isto porque – ela bem sabe – o cinema vale o que vale e, em última circunstância, pouco pode realmente: depois da passadeira vermelha, das sessões fotográficas e da estatueta na mão, Vitalina Varela vai voltar para a sua barraca na Cova da Moura. (E nós ali, no quentinho da sala de cinema do shopping na capital, a saber que isso é o pior de tudo.)

  

A coragem age contra o medo porque o medo reina. E VITALINA VARELA é o documento de uma hipérbole, o anseio de quem – apesar do tempo e da transformação – agarra as suas coordenadas identitárias sem se deixar devorar. A força anímica das mulheres cabo-verdianas, que criam os filhos umas das outras e cozinham sempre para mais um, assegura-me que Vitalina nunca ficará tão só como se sente, nem que o telhado ficará por arranjar, nem que alguém dormirá na estação. Mas Vitalina fala por todas: nunca se adivinha o sofrimento nos rostos destas mulheres à hora em que a morte os engole. Sempre calaram os queixumes mas, como Vitalina, venderam os animais para ter dinheiro, viveram sem marido e criaram os filhos sem pai. E algumas vieram para Portugal, para a Cova da Moura, para a Amadora, para a Bobadela, para a Damaia, para Sacavém. Desse destino, nasceu a migração metamórfica da grande família de nomes próprios que, de filme para filme são chamados para dentro do cinema de Pedro Costa, para meio mundo ver. 


 

 

 

“Católica, apostólica, romana”

Vitalina Varela, em autolegenda 

(entrevista a Joana Gorjão Henriques, 

Jornal Público, 1 Novembro 2019)

 

 

‘‘Mas talvez essa escuridão se sinta ainda mais absoluta em Vitalina Varela, no modo como desafia a luz dos corpos desalentados, e como mantém a morte suspensa em torno dos vivos. Porém, o amor desenha-se no rosto desta mulher que afasta as trevas à sua maneira, para oferecer uma possibilidade de esperança.’’

Inês N. Lourenço, Diário de Notícias 

 

‘‘representar o olhar de uma recém-chegada a um território definido com precisão, social, humana e geograficamente, e

também a um território cinematográfico.’’

Luís Miguel Oliveira, Jornal Público 

 

 

‘‘Vitalina Varela desce mais uns degraus, 

no programa cinematográfico

de Costa, de inscrever a história dos apagados.’’

Ana Cristina R. Pereira, Jornal Público

 

 

“Os filmes do realizador estão no centro de um furacão: no preciso momento em que a humanidade se perde nela própria, em que memória e real se confundem, em que o mais sincero filme do quotidiano se transforma num épico.”

Daniel Ribas, Jornal Público

 

 

(1) Vasco Baptista Marques, O Luto Esculpido, Expresso, Novembro 2019 

(2) Vitalina Varela em entrevista a Joana Gorjão Henriques, Jornal Público, 1 Novembro 2019

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