Sexta-feira, 19 Abril

«J’Accuse»: entre o Absoluto e a relativização da intolerância

Há muitas semelhanças na vitória de duas produções franceses (vendidas a certa medida como superproduções) em dois dos maiores festivais de cinema do mundo: Graças a Deus, de François Ozon, na Berlinale, em fevereiro; J’Accuse, de Roman Polanski, em Veneza, este sábado.

Bom, jamais existiria um Ozon (um artífice do que escapa ao moralismo) se Polanski não tivesse feito O Inquilino (1976) e Lua de Mel, Lua de fel (1992). Mas o caso é mais do que mera “parentela” histórica (termo da Antropologia para relações genealógicas indiretas). Os dois são filmes acerca do descaso judicial, acerca dos “panos quentes” que a Lei põe sobre debates que congelam os nervos do público pela sua gravidade. Ozon falava do que a Igreja escondeu ao saber que padres pedófilos não foram punidos. E investiga essa negligência com uma urdidura formal que não faz jus ao padrão rasteiro do diretor. É um momento Costa-Gavras, de triagem política (sobre o Vaticano e as suas paróquias) feitas com um domínio pleno do chamado “cinema de primeiro campo“, ou seja, narrativas de jornada, com começo, meio e fim delimitados, nas quais a conclusão de uma andança (no caso, a busca por justiça) culmina com o fim da trama. O mesmo se vê em Polanski, só que numa outra fé, a judaica. O seu trabalho de maior solidez desde O pianista (2002) é, como o filme de Ozon, um thriller de Costa-Gavras (dialético) com foco na negligência da Lei da França contra um delito antissemita.

No dia 29 de agosto, Veneza, afoita, viu, enfim, o tão esperado filme de Roman Polanski, J’accuse, que foi aplaudido com fervor ao fim de sua projeção e garantiu ao seu elenco e ao seus produtores uma ovação quando estes adentraram na sala de conferência de imprensa. Aos 86 anos, o realizador franco-polaco não compareceu na sessão. Impedido de sair de França, onde vive, por um processo judicial derivado de uma acusação de abuso sexual de uma menor, Polanski teve o seu nome apedrejado, no início do festival. Foi atacado por grupos feministas que condenaram a inclusão do seu filme em concurso. A própria presidente do júri de 2019, a cineasta argentina Lucrecia Martel, revelou o seu desconforto, recusando-se a ver a longa metragem na sessão de gala, para não ter que aplaudir, ainda que simbolicamente, o realizador. A vitória do Grande Prémio do Júri só serviu para mostrar o quão grande Lucrecia é, como artista e como cidadã, capaz de pensar a importância de um bom realizador apesar de suas falhas de carácter.

De um assombroso domínio dos códigos clássicos da montagem, J’Accuse inflamou e encantou a plateia pelo seu requinte visual (em especial nos rigorosos enquadramentos da fotografia de Pawel Edelman) e pelo contundente debate que abre sobre deveres, direitos e intolerâncias na Lei.

Escrito por Robert Harris a partir do romance (de sua própria autoria) An officer and a spy (O Oficial e o Espião), a longa metragem revive o Caso Dreyfus: um escândalo que assolou a França no fim do século XIX. Em 1894, o oficial Alfred Dreyfus (papel do galã Louis Garrel) foi preso, sob uma falsa acusação de traição, alimentada por uma histeria antissemita no exército francês. Um ex-professor dele, o coronel Georges Picquart (vivido pelo ganhador do Oscar Jean Dujardin, de O artista), fará de tudo para provar que a sua prisão é injusta. Os seus esforços vão mobilizar o notório escritor Émile Zola (1840-1902), que escreve uma carta pública contra a postura intolerante da Justiça.

Tudo, no cinema de Polanski, reza pela cartilha autoral da perda de controle. Nos seus filmes, o enlouquecimento é um destino inevitável. E com a Corte da França não é diferente. Igualmente descontrolada é a fé de Picquart na Justiça.

Fica, no início do filme, uma sensação de fúria, causada pela cerimónia de desonra de Dreyfus, que tem as suas medalhas arrancadas vexaminosamente diante dos olhos de uma multidão que o vaia, numa hora ignorante. No fim do filme, fica uma sensação de que é necessário calma, para que se estudem os “tribunais populares” com parcimónia, de modo a não se crucificar Jesus em prol da liberdade de um bandido à la Barrabás. No outono da sua história, Polanski dá um filme sobre a necessidade de provas diante do grande julgamento público que as relações sociais virtuais se tornaram.

É um filme de alerta… como era o de Ozon, sobre o pecado da pressa, sobre o pecado da intolerância. Obrigado, Lucrecia. 

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