Sábado, 27 Abril

Morreu a cineasta feminista Yannick Bellon (1924-2019)

“Tratei muitas vezes nos meus filmes alguns aspetos da realidade feminina porque sinto-me completamente preocupada com o status das mulheres.” – Yannick Bellon

Faleceu ontem, 2 de junho, aos 95 anos, a cineasta francesa Yannick Bellon. Conhecida pelo seu feminismo e como o transportou para o cinema, Yannick Bellon é responsável por filmes como Uma Mulher Livre (1974), o qual lhe valeu a Concha de Prata pela realização no Festival de San Sebastián. Nesse ano, o grande vencedor do certame foi Os Noivos Sangrentos de Terrence Malick. 

O seu filme, com o nome original La femme de Jean, passou a ser usado correntemente no país para definir todas as mulheres que, após serem rejeitadas por um homem, “renasciam” mais fortes, mais belas e livres. “A Mulher Livre segue o percurso da Nadine, abandonada pelo marido e que aprende a viver de forma diferente. Ela não quer ser mais a esposa do Jean, mas um ser separado de todo. Depois do filme, muitas vezes, conheci mulheres que me declaram serem ‘A Mulher Livre’. Às vezes, até mesmo, diziam que as suas vidas tinham mudado depois de ver o filme”, afirmou Bellon em 1986 numa entrevista ao 24 Images. 


Uma Mulher Livre

Filha de uma fotógrafa (Denise Bellon) e com um tio ator (Jacques Brunius), Yannick e a sua irmã Loleh Bellon (com quem trabalhou várias vezes) cedo começam a trabalhar no mundo das artes, estando dois anos no Centro Artístico e Técnico da Juventude do Cinema e um no Instituto de Estudos Superiores do Cinema (IDHEC, agora integrado na La Fémis).

Depois de ser assistente na montagem de Myriam Borsoutsky, e de ajudar Nicole Védrès no filme Paris 1900, realiza o seu primeiro projeto, Goémons (1948), em condições tão rudimentares quanto a vida dos que filma na ilha bretã de Béniguet. O documentário passa uma má imagem de França e viria a receber o Grande Prémio no Festival de Veneza em 1948. 

Em 1951 executa outro trabalho documental, desta vez colocando à frente da câmara a famosa romancista Colette, a qual fala das suas memórias, dos gatos, da sua amizade com Jean Cocteau, e da sua paixão pela escrita. Esteve em competição no Festival de Cannes, na secção de curtas metragens.


Colette

Seguidamente, visitou a reconstrução de Varsóvia pós 2ª Guerra Mundial com Varsovie, quand même… (1954), e em 1957 filma um dos segmentos de Die Windrose (A Rosa dos Ventos), projeto da DEFA, companhia de produção da Alemanha Oriental que tinha sido encomendado pela Federação Mundial de Mulheres. Na obra, acompanhamos a luta de mulheres trabalhadoras na Itália, no Brasil, na União Soviética, na China e na França. Alberto Cavalcanti, Sergey Gerasimov, Gillo Pontecorvo e Alex Viany filmaram com ela os vários segmentos deste filme, que contava ainda com nomes  como Jorge Amado (no argumento), Joris Ivens (na produção) e Simone Signoret, Yves Montand e Helene Weigel, esposa do dramaturgo alemão Bertold Brecht, no elenco.


A Rosa dos Ventos

Em 1966, e depois de mais algumas curtas metragens, tem a responsabilidade de filmar para a TV o programa literário mensal Bibliothèque de poche (Literatura de Bolso), trabalho que executa até ao início da década de 1970, na qual se viria a estrear e a afirmar no cinema de ficção: primeiro com Quelque part quelqu’un (1972), um filme sobre a solidão nas grandes cidades; e depois no já referido Uma Mulher Livre. Questionada sobre a razão tardia para realizar longas metragens, Bellon afirmou que esse formato parecia um “empreendimento insuperável” e que os documentários e o trabalho na montagem a fascinava. Pelo caminho, e em 1967, assina La Plaie et le couteau Charles Baudelaire, outro documentário.

Em 1978 lançou Amor Violado, protagonizado por Nathalie Nell e com a presença de um muito jovem Daniel Auteuil, onde seguimos a história de uma enfermeira que é violada. Caracterizado como um objeto panfletário, o filme suscita diversas reações negativas, com a Cahiers do Cinéma (via Danièle Dubroux) a definir a obra como “a menos surpreendente da história do cinema” e Jean-Luc Godard, cita a Télérama, a apelidar Yannick Bellon como uma “verdadeira cabra” (véritable salope) por ela demonstrar “apreciar a violação enquanto faz o espectador apreciar” também.


Amor Violado

À luta laboral (A Rosa dos Ventos) e à luta pela justiça (Amor Violado) juntou-se a luta contra a doença. L’amour nu (1981), a história de uma mulher marcada por um cancro de mama que tem de superar uma mastectomia, é mais um filme de superação no feminino, uma marca identitária da sua cinematografia, onde os homens nunca foram meros vilões de cartão, mas algumas vezes também eles vítimas dos preconceitos, como no seu La triche, de 1984. Mais que um filme sobre homossexualidade com uma veia de filme policial e criminal, a fita toca no tema da bissexualidade ao seguir um policia de Bordéus casado que se apaixona por um jovem músico.


La Triche

Em 1989 filma Les enfants du désordre (1989), onde a atriz Emmanuelle Béart muda radicalmente de imagem, brilha e é nomeada ao César. Em 1992 executa a sua última longa-metragem, L’affût, com Tchéky Karyo, Dominique Blanc e Patrick Bouchitey, mais uma história de recomeços e dúvidas; e só voltaria a filmar novamente em 2001, uma nova curta: Le souvenir d’un avenir. 

Vamos sentir a falta da visão de Yannick Bellon sobre o mundo. O seu cinema permanecerá como o testemunho das suas lutas“, disse Franck Riester, o ministro da Cultura em França no Twitter, sobre o desaparecimento da cineasta – que trabalhou ainda na montagem de diversos filmes de Pierre Kast, como Uma Portuguesa em Paris (1959)Os Sorrisos do Destino (1963), coproduzido, entre outros, por Clara d’Ovar (protagonista do filme de 1959) e António Cunha Telles.

Questionada se algum homem poderia ter assinado os seus filmes, Bellon respondeu também em 1986: “Fazem-me muitas vezes essa questão e sempre respondi da mesma maneira: ‘Sim’. O olhar teria sido diferente, mas de qualquer maneira, homem ou mulher, todo o ser humano, todo o cineasta dá um olhar diferente perante as coisas da vida. Um cineasta pode entender e sentir os problemas das mulheres e explicá-las num filme.” 

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