Sexta-feira, 19 Abril

«Godzilla»: no primeiro passeio do rei lagarto

É óbvio que nos dias de hoje a imagem de um homem dentro de um fato de latex em forma de lagarto bípede a destruir uma cidade de miniatura não é nenhuma invocação infernal, nem sinónimo de medo visual, pelo contrário é um ridículo involuntário. 

Contudo, numa época pós-Hiroxima, onde o Japão tentava ressurgia das cinzas, das perdas humanas e materiais e da humilhação, o medo da radiação se tornaria num dos conflitos internos que os nipónicos ousariam em contornar, tornando Godzilla no seu signo.

Gojira (titulo original) de Ishirô Honda, é acima de tudo, fora as suas influências e veias “trash” (que se acentuaram nas sucessivas sequelas), uma metáfora sobre esse mesmo medo, o qual o monstro de supostamente cinquenta metros de atura, fruto da radioatividade imposta pela exploração nuclear, destrói metrópoles sem dó nem piedade, vangloriando os “fantasmas de um passado recente”. E sob este trecho de destruição são nos apresentados todo um conjunto de imagens que de certa forma evocam espetros: um dos exemplos dessas mesmas é a da mãe desesperada temendo a sua vida enquanto abraça fortemente as suas crianças. Todo o filme funciona assim numa poética metamorfose aos eventos que originaram a destruição de Hiroxima e Nagasáqui, a Sodoma e Gomorra do século XX. A bomba atómica e a radioatividade como réplica dos pecados mortais.

E sabendo que um retrato fiel aos acontecimentos não era permitido na altura no cinema japonês, a fim de prevalecer e respeitar as memórias das vítimas, Godzilla, o lagarto gigante, foi a forma viável de conseguir transmitir tais horrores, tais medos, salientando ao mundo que a tragédia não fora esquecida e era uma ferida ainda por sarar, embora constrangida pela honra digna da nação. Infelizmente, fora o misticismo invocado pela criatura antagonista (que viria a tornar-se num herói nacional no Japão nos futuros capítulos), Gojira é atualmente um filme que sobrevive graças à história envolta e legado concebidos.

Hoje é mantido como uma relíquia, um objeto digno de museu e de curiosidade mórbida. Sendo uma produção sem propósitos de ir além mais do mero entretenimento lúdico (mesmo intrometendo numa dupla interpretação), o seu orçamento reduzido limitava-o de possíveis rigores produtivos. Assim, recheado de atores de segunda (com a exceção de Takashi Shimura – que era dos atores mais presentes na filmografia de Akira Kurosawa), fraca aptidão de personagens e subenredos ridículos; esta era uma obra B no seu termo mais específico, “massacrado” pelas sucessivas passagens do tempo.

Todavia, os estúdios Toho encontraram neste pitoresco objeto subliminar, com ideias bases do filme de 1953 da autoria de Eugène Lourié (The Beast from 20,000 Fathoms), um franchise a ser explorado. Sob esse efeito, nasce um subgénero tão próprio para os nipónicos que se tornou numa imagem de marca (o cinema kaiju), um produto inimitável que preserva uma identidade intransferível.

Como tal, Gojira, a ameaça que reduzia cidades em pó, converteu-se num herói nacional de um cinema rentável e de baixo-orçamento, com capítulos e mais capítulos a posicionar a criatura em embate com outras, todas elas representando anomalias de uma mundo que atravessa a era nuclear. É dito que Kurosawa sonhava dirigir um filme deste mesmo universo, e que foi impedido pelo suposto engrossamento dos custos que a sua vinda possibilitaria, até porque Gojira e a sua trupe foram direcionados para nichos. A sua megalomania apenas foi descoberta pelos norte-americanos nas suas sucessivas revitalizações (1998, 2014, 2019).

Notícias