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Cheira a espírito juvenil: o dia que o “rock’n’roll chegou a União Soviética

Leto (Summer, no título internacional) vai chegar aos cinemas em Portugal em 2019 e o C7nema reviu o filme no Festival de Sevilha – depois de ter acompanhado a sua estreia mundial com uma calorosa acolhida no Festival de Cannes (crítica aqui [1]).

A lacuna não é facilmente compreensível: dentro do universo alternativo, o filme do russo Kirill Serebrennikov teria tudo para agradar cinéfilos e não-cinéfilos, pois TODAS as histórias de “rock’n’roll” são boas – pelo menos na medida em que espírito juvenil contagia a realização e serve para relembrar as glórias e as angústias de ser adolescente.

Para estes TODOS as formas de poder, institucionalizadas ou sob a capa de normas de civilidade, são autoritárias e têm de ser rompidas. Mas, no caso da ex-União Soviética no início dos anos 80, é possível que, como em outros países recém saídos ou em vésperas de sair de ditaduras atrozes (Portugal incluído), a história é particularmente fundamental. E aí o “rock” de inspiração anglo-saxão é o combustível para a produção local molestar as autoridades (que fiscalizam os movimentos dos jovens nos concertos: estes tinham de permanecer sentados e apenas podiam mexer as pernas!) e mandar abaixo conceitos estáticos de Estado, pátria, família ou exército.

Verão em São Petersburgo

“Summer” regista um período na referida estação em São Petersburgo (então Leningrado) e conta muitas histórias (é notória a capacidade como Serebrennikov conseguiu uma direção de “casting” eficiente para encontrar atores e personagens com carisma suficiente para pouco tempo em cena), mas principalmente a dos três protagonistas – que vivem um triângulo amoroso consentido.

Ironicamente, a história menos interessante é a de Natasha (Irina Starshenbaum), a representação de Natalya Naumenko, em cujas memórias o filme baseia-se. Ela está no centro do interesse entre um astro da cena local, Mayk Naumenko (Roman Bilyk) e um recém-chegado, Viktor Tsoi (Teo Yoo). Apesar de uma rivalidade duramente contida nos seus desejos pela mesma mulher, os laços musicais terminam por prevalecer na relação entre ambos – funcionando o primeiro como uma espécie de mentor do segundo.

Mortes prematuras

No mundo real, Mayk Naumenko foi o fundador de uma banda de “blues” e “rock” bem-sucedida, os Zoopark – banda fortemente inspirada em Bob Dylan e destacada pelas letras líricas que também são realçadas no filme. Naumenko teve uma morte prematura, aos 36 anos, em 1991, numa história nunca bem esclarecida que culminou com uma queda na sua casa e uma hemorragia cerebral subsequente.

Já Viktor Tsoi foi o fundador dos Kino, uma das mais populares e influentes bandas da história do “rock” no seu país. A sua morte também inesperada num violento acidente de automóvel, com apenas 28 anos, em 1990, foi um enorme choque na União Soviética.

Maralhal musical

Como se está no início dos anos 80, os russos apanham o vibrante comboio do “rock´n´roll” com tudo misturado – desde os anos 60 com Lou Reed e os seus Velvet Underground, passando pelos incontornáveis mitos da era “glitter” (T-Rex e David Bowie – especialmente este último), a desconstrução dos heróis sagrados pelos “punks” e a criatividade aberta por estes com a “new wave” nova-iorquina e o “pós-punk” inglês.

Essa confusão de tendências mistura-se com os artifícios diversos usados por Kirill Serebrennikov, que inclui animação e números musicais. Estes, introduzidos por um personagem que depois vai esclarecer que “isso não aconteceu”, trazem os passageiros ordinários de um autocarro a cantarem “The Passenger” ou, numa violenta cena num comboio onde velhos conservadores chamam a polícia porque os jovens estavam a insultar a tradição, cantam uma versão visceral de “Psycho Killer”.

As sombras da velha União Soviética

O muro de Berlim e a velha União Soviética caíram em 1991, mas o espírito da cortina de ferro ainda parece assombrar a sociedade russa com o seu ex-chefe da KGB na presidência. Durante a apresentação do filme no Festival de Cannes, o seu realizador não pôde estar presente por estar em prisão domiciliar por alegada fraude no recebimento de recursos estatais – mas com a comunidade artística do país interpretando o facto como um acontecimento político em virtude das críticas do realizador à anexação da Crimeia e a defesa pública da comunidade LGBT.

No todo, é um filme muito russo, mas que através do espírito de rebelião juvenil instiga os espectadores de todo mundo a rever as celebrações e as desgraças que todos conhecem – num século XXI cada vez mais assustadoramente retrógrado.