Sábado, 20 Abril

Terrence Malick, 50 anos de carreira

Começou nesta manhã de segunda-feira um zunzunzum nas redes sociais de que a 69ª edição do Festival de Berlim, agendado de 7 a 17 de fevereiro de 2019, vai celebrar os 50 anos de carreira de Terrence Malick agora que o realizador – quase um ermita em sua aversão a exposição pública – começou a frequentar recepções e palestras, para falar de algo que está na fronteira entre o cinema e a metafísica. Ele estreou-se em 1969, com a curta-metragem Lanton Mills, e partiu de lá para fazer Noivos sangrentos, lançado em 1973 e, então, recebido com status de obra-prima. Um status que se repetiu em Dias do Paraíso, pelo qual recebeu a láurea de Melhor Realização no Festival de Cannes, em 1978.

Na época, ele foi à Croisette, mas não se deixou encantar pelo tapete vermelho. Agora, não: são outros tempos… Uma versão estendida do polémico A Árvore da Vida, o vencedor da Palma de Ouro de 2011, com 188 minutos (e não com os 139 minutos originais), surgiu no Festival de Veneza, há um mês, como atração especial, fora de concurso. O Lido abre sempre as portas a ele, pelo menos desde que passou To the Wonder: A Essência do Amor (2012), com Ben Affleck. Mas lá ele não dá que falar. Preferiu aparecer no SXSW, em Austin, no Texas: um dos festivais americanos que hoje mais crescem. Mas a Berlinale é outra conversa: lá, ele é apaparicado como se fosse um Deus do écran, mesmo quando não comparece. Ganhou até um Urso de Ouro, em 1999, com The Thin Red Line: A Barreira Invisível, longa-metragem que marcou o seu regresso às telas, após um hiato de quase duas décadas de silêncio, dedicadas a aulas de Filosofia e compromissos sazonais como argumentista para amigos hoje desaparecidos, como Jim McBride. Agora, há uma efeméride: o jubileu de ouro da sua filmografia. E há uma produção inédita, saindo do forno: aos 74 anos, o realizador tem uma longa-metragem sobre a II Guerra Mundial – vista do lado germânico não hitlerista – pronto para sair. Chama-se Radegund. Nesta coprodução EUA e Alemanha, o ator August Diehl (de O jovem Karl Marx) interpreta o fazendeiro austríaco Franz Jägerstätter, um mártir das lutas de oposição ao nazismo, que combateu o Eixo nas regiões rurais de seu país, mobilizando a juventude local.


Radegund

Objeto de devoção na Áustria, considerado um santo por alguns aldeões, Jägerstätter foi assassinado pelas tropas de Hitler em 1943 e, anos depois, acabou sendo beatificado pela Igreja Católica. O agricultor cruza o caminho de um oficial do exército alemão também em crise, Herder (vivido pelo belga Matthias Schoenaerts), enquanto inventa estratégias para resistir às forças nazis. O prestígio de Malick serviu como um ímã para atrair mitos germânicos dos palcos e das telas como Bruno Ganz (Asas do desejo) e Jürgen Prochnow (Das Boot), que integram o elenco da fita. A fotografia é de Jörg Vidmer (de V de Vingança) e não do seu amado parceiro Emmanuel Lubezki.

É o projeto mais intimista do cineasta e, ao mesmo tempo, o mais esperado pelo mercado, por representar uma ruptura com as narrativas mais filosóficas e messiânicas de seus últimos filmes, como Song To Song (Música a Música), lançado ano passado sob vaias. Há uma expetativa de que Radegund possa abrir os trabalhos em Berlim e lutar pelo Urso dourado. A estreia está prevista para março, em solo europeu – mas nada foi oficializado. Tudo em Malick é cercado de segredo. Nem se sabe se ele vai aparecer na Berlinale, se for selecionado. Em 2011, quando A Árvore da Vida conquistou a Palma de Ouro em Cannes, ele não participou de nenhum dos eventos públicos ligados ao filme, embora o cineasta tenha estado na Croisette e jantado com os diretores artísticos do evento. Ao longo de 49 anos de carreira, no qual finalizou onze filmes, Malick foi visto raríssimas vezes em público, recusando ser fotografado ou entrevistado.


Malick e Christian Bale
 

Um dos únicos jornalistas que romperam seu claustro foi o francês Michel Ciment, editor da revista Positif, que falou com ele no início dos anos 1970, logo após a estreia de Noivos Sangrentos (1973). Na ocasião, o então jovem cineasta falou de sua paixão pela obra de mestres como George Stevens (O Gigante) e Elia Kazan (Há Lodo no Cais). Falou ainda que era fiel a um credo: “filmes falam por si, sem a necessidade de que a vaidade dos seus realizadores ultrapasse as dimensões da tela. Quem muito badala os seus filmes, aparece mais do que sua obra. Veja Kubrick: sua aversão aos flashes torna os seus grandes filmes ainda maiores“. Ciment cita as palavras do cineasta de cor.

Há ainda um segundo credo nessa cabeça fervilhante de Malick, que, repetidamente, usa a metáfora do Éden como signo da decadência humana: o transcendentalismo como afirmação do lugar de fala do Homem na Terra. Sempre amparado por fotografias arrojadas, Malick professa na tela uma homilia espiritualista, presente em longas-metragens como os já citados Dias do Paraíso e A Essência do Amor: a tese de que a natureza está acima da vontade dos homens. Em Malick, a Natureza é a omnipotência em estado puro, só que esta é tratada a partir de contornos quase religiosos, num reflexo da formação do diretor pelo transcendentalismo, expresso em ensaístas como Ralph Waldo Emerson e Henry David Thoreau. O ideal transcendental desses autores escorre por Malick, seja pela evasão (no tempo ou no espaço) ou pelo tratamento quase divino dado ao ato de amar. A saga de Franz Jägerstätter é a forma de ele empregar a lógica transcendental nos feitos de um herói Real, que até hoje é adorado na Áustria por sua coragem. Há placas em homenagem a ele em diversos locais do território austríaco, como um emblema de resistência – palavra central na obra de Malick.

Agora é hora de saber se o realizador vai fazer jus à potência de seus anos de juventude na dramaturgia de seus próximos filmes.

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