Sexta-feira, 19 Abril

A transgressão de Spike Lee

Spike Lee lança agora o seu mais novo trabalho para a cinematografia mundial. BlacKkKlansman estreia com o intuito de trazer à tona uma história real esquecida há muito tempo pela sociedade americana, a longa-metragem conta-nos sobre Ron Stallworth, o primeiro policial negro de sua esquadra, e que com ligações telefónicas e a ajuda do seu parceiro policial branco, consegue infiltrar-se na Ku Klux Klan em 1979. Lee, com a produção conjunta de Jordan Peele – recentemente premiado pela Academia com melhor argumento por Get Out, e pitcher da ideia para BlacKkK – continua seu manifesto cinematográfico.

Honestidade é a palavra chave para análise de sua filmografia. Afro-americano, aos 61 anos, o realizador, argumentista, produtor e ator, nunca deixou de apresentar nas suas obras os seus pensamentos mais honestos sobre racismo e preconceito no geral ao longo de sua carreira e, sim, dava-se ao luxo de mudar de ideia. Criando diversos estilos para deixar a sua assinatura presente ao longo de todas as suas obras, pontos específicos tornam qualquer um de seus trabalhos facilmente identificáveis.

Do the Right Thing

WAKE UP! WAKE UP! WAKE UP!”, talvez assuste-se ao ouvir os gritos evocativos geralmente colocados no início das suas longas-metragens, presentes por exemplo em School Daze (1988), Do The Right Thing (1989) e Chi-Raq (2015), porém o grito também pode ser interpretado como uma metáfora: um pedido para que o espectador acorde para a vida ao seu redor, mesmo que para isso precise de entrar no mundo irreal da Sétima Arte. Dentro dos seus 30 reconhecidos trabalhos, os temas e estilo de realização voltam-se sempre para o mesmo foco: disparidades sociais.

Uma delas já abordada em seu primeiro trabalho She’s Gotta Have It, de 1986, é o machismo. Construindo personagens femininas fortes e presentes, temos o exemplo de Nola Darling, que precisa escolher apenas um dentro dos seus três namorados. Com essa premissa, Lee retrata a sexualidade feminina, a independência feminina, a homossexualidade, a poligamia e um elenco 100% negro em 84 minutos de puro Brooklyn e simplismo sistêmico, numa época recheada de tabus como os anos 80.

She’s Gotta Have It

Brooklyn também é cenário recorrente durante sua carreira, e é lá em que centra a história de Do The Right Thing, o seu mais consagrado trabalho pela crítica. Com o estilo hiper-realista de desenvolver tramas, Lee aborda nesta obra os preconceitos, não apenas raciais de brancos para com negros, mas também de imigrantes com não imigrantes, imigrantes com imigrantes e negros com negros. Adquirindo um discurso focado na honestidade e nas multi-camadas das relações sociais, a definição de violência neste caso é também um dos focos da narrativa, e a violência gratuita acaba rendendo a sua cena mais chocante.

Esta abordagem toca em limiares de atos recorrentes na sociedade, porém que são extremamente racistas, como a prática de blackface, retratada em Bamboozled (2000), abuso de poder policial para com a comunidade negra, e as religiões praticadas por ela, como em Malcolm X (1992). A cinebiografia do ativista afro-americano é protagonizada por Denzel Washington, em uma de suas quatro colaborações com o realizador, e também é uma expressão honesta sobre sua trajetória, contando da época no cárcere até à conversão para o islamismo e depois o seu assassinato. Nelson Mandela faz um aparição especial no final.

Malcolm X

Cores saturadas, shots granulados altamente contrastados, a quebra da quarta parede (fala do ator em direção ao espectador), e o movimento de camara chamado “double dolly shot” são assinaturas altamente marcantes nos seus trabalhos. Inúmeros são eles que contam com a camara a acompanhar as suas personagens em momentos fatídicos, como em Inside Man (2006), 25th Hour (2002), Clockers (1995), Crooklyn (1994), e o próprio Malcolm X.

Spike Lee denomina os seus filmes como joints, que em tradução direta para o português seria um conjunto ou junção, porém na linguagem coloquial americana, também pode ser referenciada como um “charro”, ou um local para gastar o tempo com amigos. Más línguas acreditam piamente na metáfora de que Lee pretende passar a mesma sensação de fumar cannabis para os espectadores, porém, o caminho é perceber que apenas existe um filme feito por ele que não recebe esta denominação: Oldboy, de 2013.

Oldboy

Uma adaptação do aclamado filme sul-coreano de Park Chan-wook, dez anos antes, torna-se no seu filme mais controverso. Representando um prejuízo de aproximadamente 25 milhões de dólares. Foi caracterizado como “desnecessário” pela crítica, já que não apresentou nada de novo à trama e apropriou-se de uma cultura não americana. A distribuidora ficou encarregada de diversos cortes e edições ao produto final feito por Lee, que acabou por retirar uma das suas assinaturas mais típicas.

Por fim, diante da observação de que Spike Lee é um realizador ousado, fiel aos seus princípios, e reconhecidamente talentoso, quais são os motivos para que sua carreira não tenha sido recheada de prémios como foi de trabalhos e polêmicas? Diante de uma Hollywood racista e claramente controversa, não surpreendentemente fez com que Lee financiasse independentemente muitos de seus trabalhos, mas o seu reconhecimento hoje consegue achar folegono meio da avalanche do cinema branco normativo – e muitas vezes repetitivo – rendendo a Lee este ano o Grand Prix no Festival de Cannes por BlacKkKlansman.

BlacKkKlansman

O seu último filme, que também enfrentou críticas, sendo taxado de “inconsistente” por costurar à trama as ocorrências atuais de manifestações de supremacistas brancos em Charlottesville, nos EUA, também expressa, no que pode ser considerada uma vanguarda cinematográfica, a possibilidade de retratar opiniões autorais no cinema, críticas fundamentadas e uma tentativa antropofágica de adicionar elementos documentais à uma história ficcional. Sendo necessário, assim, analisá-lo, também socialmente, e contextualizá-lo para atingir uma opinião global sobre a obra de Lee, colocando-o no lugar que o realizador realmente merece estar.

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