Sexta-feira, 19 Abril

John Cameron Mitchell: “Nicole Kidman é a minha boneca de Voodoo. Se a alfinetares, eu aleijo-me”


John Cameron Mitchell | © Fred Ambroisine

Cinco anos depois de terem colaborado em O Outro Lado do Coração, o realizador John Cameron Mitchell (Shortbus) e a atriz Nicole Kidman trabalharam novamente juntos, desta vez em How To Talk To Girls At Parties (Como Falar com Raparigas em Festas), uma produção que adapta um conto de Neil Gaiman e que estreou em Portugal na semana passada.

Presente no Festival dos Campos Elísios em Paris (12/19 de junho), para apresentar esse mesmo filme na abertura do certame, John Cameron Mitchell falou da sua experiência em trabalhar com a atriz australiana, definindo-a mesmo como a “Isabelle Huppert australiana“: “Somos pessoas semelhantes, até porque somos os dois extremamente brancos (risos). Não, não é isso (risos). Ela é muito segura de si, ela dirige-se a si mesmo. É como se fosse atriz e realizadora simultaneamente. Por isso eu trabalho com ela de maneira diferente a qualquer outro ator. Na verdade, eu não quero influenciar ou estragar o seu processo de criação. Entre takes digo-lhe, ‘Nicole, precisas de mim?’ – o que normalmente significa que tive uma ideia nova, mas deixo a ela a tarefa de me perguntar por essa nova ideia, até porque pode estar já no rumo que quer dar [à personagem e não a quero interromper]. Nós damos-nos muito bem, ela é muito corajosa nas suas escolhas, procura sempre realizadores que a desafiem (…) ela está sempre à procura de um novo desafio. (…) Ela é como se fosse a minha boneca de Voodoo. Se a alfinetares, eu aleijo-me”.

No filme, Kidman interpreta Boadicea [referência à guerreira que lutou contra os Romanos na Grã-Bretanha], uma estilista completamente alienada que descobre e serve de agente a talentos Punk. Ela vai se cruzar no caminho de En (Alex Sharp) e Zan (Elle Fanning), dois apaixonados no final dos anos 70, em Croydon, Londres.

Questionado até que ponto essa personagem é autobiográfica, Cameron Mitchell explicou: “Sim. Nós não tivemos muito tempo para ensaios, mas ela [Kidman] disse-me: ‘este era o papel que irias interpretar [se fosses ator], por isso, porque não dizes os textos que querias dizer e eu imito-te’. (risos) Por isso, esse foi o nosso ensaio (risos)“.

Para além de falar de How To Talk To Girls At Parties (Como Falar com Raparigas em Festas), grande parte da masterclass que o cineasta deu no certame parisiense foi em torno de Shortbus, o seu filme mais polémico e que lançou a sua carreira. Tantos anos depois e nos pós #MeToo, seria possível fazer este filme agora, tendo em conta o grau explicito das cenas sexuais e a direção de atores? Mitchell começou por minimizar a relação entre os velhos tempos e a influência dos novos movimentos na criação artística, mas acabou por reconhecer que nos EUA isso seria mais difícil: “É um pouco triste, algo até condecendente. Se eu tentasse financiar [o Shortbus] nos EUA hoje em dia, alguém ia certamente dizer: ‘como há sexo no filme, certamente alguém que está a ser explorado’. Alguém ia certamente dizer isso. [Na época] fomos muito cuidadosos, pois todos os nossos atores formavam casais. Nunca houve nenhuma queixa e todos passaram uma boa temporada nesta experiência artística. Atualmente há um pouco de pânico… é como se existisse algo paternalista… como se tivessem de proteger toda a gente de ter sexo, seja de forma artística ou não. Isto porque [se pensa automaticamente] que alguém está a ser vitimizado. Acho que isso é uma espécie de pânico sexual subliminar, em oposição a um verdadeiro instinto protetor (…) É como se fosse uma nova forma de ser puritano. Na época que estreou [2006], o filme foi alvo dos conservadores e mesmo banido em muitos países, mas hoje em dia seriam os liberais a tentar travá-lo, o que é algo curioso.


Shortbus

Mitchell relembrou depois um dos momentos de maior orgulho que teve com esse filme, referindo o facto dele ter sido banido na Coreia do Sul e interdito durante dois anos até que o Supremo Tribunal aceitasse a sua exibição e alterasse mesmo as leis de censura no país: “A minha parte favorita foi que o Supremo Tribunal foi obrigado a ver o Shortbus“, disse, entre risos.

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