Quinta-feira, 28 Março

«Alemanha, Ano Zero»: perdoar e castigar em Berlim

As ruínas prevalecem como feridas abertas de uma cidade megalómana e orgulhosa que conheceu a derrota da pior maneira possível. A capital alemã, Berlim, presencia o seu ano zero, o seu recomeço, uma ressurreição quase bíblica e nada glorificante, cujo intervalo não decorreu em três dias mas sim em três anos. Porém, este regressar é doloroso, no qual uma outrora triunfante nação que vivia “o seu ignorante sonho” é forçado a resistir à perpetua humilhação, de joelhos perante os seus declarados “inimigos”.

Esta cidade fantasma, onde os seus habitantes comportam-se como peregrinos, vagueando em direções incógnitas, eis que surge o novo encontro de Roberto Rossellini com a realidade filmada, o seu neorrealismo, um estilo resistente às fantasias cinematográficas e à ficção moralista de Hollywood. Um cinema despido de qualquer aura literária ou onírica e da inesperada arte da impressão. Em Alemanha, Ano Zero, o seu veio artístico é puramente outro, o puro real digno de um documentário etnográfico, com o cenário a assombrar cada plano e personificando-se na pele de um menino, um “inocente” numa consequência devastadora.

Edmund Moeschke não deseja somente sobreviver, mas sim o de não desapontar a sua respetiva família de tornar, esforçando-se a transformar, este pesadelo no menos insuportável possível. O trabalho árduo que tenta submeter-se ilegalmente, o ilícito do seus atos para “matar a fome” dos seus e por fim a sua descabida noção de realidade que o faz cometer um hediondo e mortal gesto. Edmund é Berlim, e Berlim é Edmund, uma dualidade que une personagem e cenário, com Rossellini a operar umbilicalmente numa transfiguração gradual, um percurso prescrito de uma cidade reduzida a ruínas e de uma criança ainda por transcrever.

Alemanha, Ano Zero é também uma afronta ao high moral ground levado a cabo pelo cinema aliado, é a confrontação de um teor cinzento com a camada “sonhadora” proveniente de Hollywood, é a limpeza dos maniqueísmos evidentes mesmo que a moralidade esteja presente no trágico desfecho desta obra. Mas Roberto Rossellini não converte a sua obra num retrato da tremenda luta de um povo pela sobrevivência, é sim, o confronto desse mesmo com o seu orgulho nacionalista. Tal como evidenciara-se na metáfora cinematográfica em Der letzte Mann (O Últimos dos Homens, 1924), de F.W. Murnau, a Alemanha segue a sua dignidade como uma farda limpa e engomada, a última “telha” a cair de um teto descoberto. Todo este retrato que deixa o espectador vaguear livremente, mais livre que as suas próprias personagens na sua cidade natal, não serve de catarse para um passado a ser recordado vezes sem conta, ao invés disso é um espelho que reflete a imagem distorcida do nosso “eu” julgador.

A Alemanha perdeu a Guerra, os seus “filhos” pedantes numa moribunda distinção o qual chamam de futuro e a tomada de posse, imperativa numa cidade feita refém, condenada aos “cegos” pecados que afligiram. Assim, voltando a reafirmar, Edmund é Berlim, o mais preocupado com o seu bem estar face à negligencia cometida por outros, e o destino que colide com o silencioso pedido de ajuda duma outrora imponente metrópole confinada ao seu … ano zero!

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