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Pedaços de «Mosaic» – por André Gonçalves e José Raposo

O caminho e não a resolução como mote  

Um grande mistério pode, por vezes, ser menos sobre a resolução do que o caminho para lá chegar. No final do ano passado, o multifacetado Steven Soderbergh decidiu fazer o inédito: uma app audiovisual intitulada Mosaic que jogava com a noção de interatividade do espectador – ele próprio agiria como detetive num crime, decidindo por onde navegar, entre os vários fragmentos narrativos desenhados. A app nunca chegou a estar disponível em Portugal, infelizmente. Claro que haverá sempre caminhos para enganar o sistema económico que tanto se apregoa de “globalista”, mas que em casos concretos como este mostra bem as suas limitações. Para todos os que, no entanto, jogaram pelo seguro/adquirido e não conseguiram testemunhar um dos muitos possíveis caminhos narrativos como este escritor, Soderbergh editou uma versão mini-série, sob a alçada da HBO. Onde a app começava por nos introduzir a vítima de um trágico homicídio (Olivia Lake, via Sharon Stone), Soderbergh toma a decisão em formato “série linear” de pegar numa peça do puzzle final, que aparenta apontar para uma resolução, para a partir daí recuar atrás no tempo. Um anti-mistério?   [André Gonçalves]

 

Uma proposta que também desafia

Um anti-mistério em forma de puzzle, um whodunnit (“quem matou?”) na era do cinema digital: enquanto processo de produção, mas sobretudo enquanto método de leitura. Mais do que um “descubra você mesmo”, aquilo que Soderbergh parece propor é um olhar panótico sobre a estrutura narrativa que sustém uma história – um pouco como quem diz, “olhem, isto é tudo realmente muito arbitrário, mas reparem como tudo tem princípio, meio e fim – tudo pensado pelo criador”. Não se trata de rescrever a história de Olivia como se estivéssemos numa sandbox típica de um videojogo, e perante cada decisão tomada pelo jogador fosse possível alterar (ainda que muito ao de leve) a conclusão lógica da história. O jogo de Soderbergh é outro: uma interatividade que olha para a narrativa enquanto estratégia de acesso a informação. A serialização televisiva enquanto apogeu dessa mecânica – é esta uma das ideias centrais de Mosaic. Sim, Mosaico: olhar para a junção entre forma e conteúdo, pera pegarmos na questão em termos esquemáticos, é ver Soderbergh a pensar a especificidade das imagens móveis no contexto televisivo. Uma proposta que também desafia: a fragmentação dos takes enquanto exercício de controlo autoral. No lugar do plano sequência, um prisma monocromático. Por mais voltas que se dê, a mesma asfixia: Olivia estava cercada por potenciais assassinos. [José Raposo] 

 
 
 

Fragmentos fluídos que convidam a inspeção minuciosa

Existe de facto algo nestes fragmentos que aparenta só fazer sentido com inspeção – e reinspeção – minuciosa. A app tinha como uma das suas frases promocionais algo como: “e quando tudo terminar, vão querer olhar outra vez. E outra vez. E outra vez.”. O feito de Mosaic enquanto minissérie linear também é esse: no final da série, querermos voltar atrás, e apanharmos melhor personagens que são brevemente deslargadas para depois serem vitais para uma possível resolução. Este acender e desligar abrupto de interruptores, tão próximo à nossa modernidade líquida (como o sociólogo Zygmunt Bauman chama) é feito com uma edição sempre fluída que faz com que o corte estranhamente não pareça tão abrupto como efetivamente é. Linhas (threads) são desligadas, para depois reaparecerem, ou então despedirem-se fora do ecrã sem termos efetivamente uma sensação de encerramento. E por falar nisso, há que falar de como Soderbergh decidiu brincar ainda mais com a nossa percepção: perante uma resolução mais fechada, o cineasta convida, ultimamente, a abrirmos os nossos horizontes e a expandir a miríade de possibilidades, num último segmento que a mim pessoalmente me lembrou como David Lynch (outro senhor a fazer cinema para televisão) encerrou o seu Twin Peaks: The Return – óbvio universo-referência para as narrativas “quem matou?”. Basicamente, trata-se de uma dinâmica de dar à audiência tudo o que queriam mais o que não esperavam querer separada em duas partes: primeiro, procura-se satisfazer o público geral, com um final mais esperado (e neste caso, tirada logo a cartola, porque acho que Soderbergh, tal como Lynch, interessa-se menos por quem efetivamente matou, e mais nos efeitos que a morte teve na comunidade); na segunda metade, sai-se do detalhe para a grande imagem, convida-se à reflexão, para mostrar que o mundo não é como as séries de televisão que vemos (repare-se em como esta ideia que o mundo real não é como a TV está até explícita numa menção a The Wire) e que de facto, todos são suspeitos, mesmo que as provas mais concretas apontem para uma pessoa. É-me difícil falar disto sem spoilers, mas diria que tal conceito é estrangeiro para qualquer um destes cineastas.

Cinema, digital.

Ora, essa questão da replayability que a app promete, traz para primeiro plano a tensão sobre os mecanismos de acesso a informação de que falávamos anteriormente. Como? Através daquele que me parece ser justamente um dos diálogos charneira da série. Mais do que meter em pratos limpos quem fez o quê nas horas que antecederam o assassinato de Olivia Lake, aquilo que a sequência que reúne à mesa de café algumas das peças principais (o polícia responsável pela investigação, e um dos amigos mais chegados de um dos principais suspeitos) deste xadrez “soderberghiano” a meu ver enfatiza – com a enganadora aparência de uma citação despreocupada – é, isso sim, a natureza do processo de investigação. Não (necessariamente) daquela investigação em particular, mas da investigação enquanto processo. Esta é a situação: quando Frank (o amigo do suspeito) sugere a utilização de um microfone oculto para gravar a conversa que irá ter com o suspeito do crime, “tal e qual costumavam fazer no The Wire”, a célebre série da HBO, a resposta dada por Nate (o polícia) é suficientemente elucidativa para que o diálogo em causa não seja apenas um daqueles momentos de “piscadela de olho” à cultura popular: “nós não estamos em Baltimore. Estamos em Summit: alguém conta uma coisa, e outro terá que passar essa informação a uma terceira pessoa”.

Por outras palavras (quem é como quem diz, a partir doutra perspectiva deste mosaico): aquele querer olhar “uma e outra vez” tornado possível pela replayability da app coloca em jogo um dos principais prazeres da série – desde logo o luxo (fantasia?) de um controlo absoluto sobre o regime escópico das imagens, mas sobretudo a desregulação da cadeia de informação a que Nate faz alusão. Em Summit, as regras são claras: não há outra forma de acesso à informação a não ser de forma presencial (quero dizer, corpórea), descartados que estão os mecanismos de inscrição do real como é o caso da gravação sonora. Em que é que ficamos? Num híbrido, que não deixa de espelhar com alguma provocação as possibilidades da narrativa na era da ubiquidade digital – enquanto tecnologia, e justamente por isso enquanto ferramenta de leitura do mundo.

 

Conhecer Olivia Lake

A ubiquidade dos corpos revela-se também de outra maneira. Em sequências onde se esperaria um desviar da câmara para um ecrã de telemóvel, Soderbergh prefere sempre mostrar a mensagem como legenda, não desviando o olhar do espectador sobre a ação envolvente. Tal aspecto é aproveitado de uma forma marcante numa sequência num bar entre o principal suspeito e a irmã do que acreditamos estar falsamente condenado, em que podemos assistir a duas conversas, sendo que o suspeito em questão reage de forma que poderia até ser intrusiva ou suspeita não fosse o smartphone atualmente uma mera extensão do nosso corpo. E, para reforçar aquela que pode ser a verdadeira marca autoral do cineasta para além da relação entre os corpos e o capitalismo, a decisão têm também o seguinte intuito: o foco nos atores.

Garrett Hedlund – praticamente a fazer as vezes de Channing Tatum enquanto prova de que há mais para além de uma imagem de menino bonito, Devin Ratray (outroramente conhecido como irmão mais velho de Kevin MacCallister em Sozinho em Casa) e a relativamente desconhecida Jennifer Farrin têm aqui os seus desempenhos mais desafiantes que vi deles. Mas é Sharon Stone, mesmo com um tempo de antena de um terço de toda a série, quem acaba por se transformar a grande figura omnipresente, e quando não está em cena, é ainda assim o seu fantasma o foco de especulações. Stone tem aqui material dramático suficiente para voltar a demonstrar, com a entrega de farpadas sarcásticas, um mero movimento corporal ou um mais típico esgotamento emocional porque foi, a partir de certa, altura, uma das atrizes mais subusadas de Hollywood (claro que a experiência de quase-morte que sofreu com o aneurisma cerebral em 2001 teve o seu impacto). Da femme fatale responsável pelo “descruzar de pernas mais famoso da história do cinema”, título que a acompanhará para o bem e para o mal para a campa, a vítima mortal. Vítima, mas não santa lá está; uma vítima que deixa antever todo um passado, muitas vezes nem encontrado apenas nas palavras, mas na maneira como as pronuncia. Por todos os trilhos que possam ter seguido, acabar a série com um retrato pintado de Olivia Lake (Stone) é também reconhecer o seu estatuto de protagonista omnipresente, mesmo quando não se revela fisicamente. Tal como Laura de Otto Preminger, e a “Laura Palmer” de Lynch o eram, a pintura e a fotografia emolduradas serviam para realçar essa memória. 

O cinema está por toda a parte. 

Por tudo isto, é natural que se possa olhar para Mosaic e reconhecer na série simultaneamente uma súmula e algo de inédito no contexto da filmografia de Soderbergh. Por um lado, é uma proposta quase óbvia, na medida em que aquilo que está em questão é uma série com um enredo fragmentado centrado num determinado processo, tudo muito em linha com o que tem vindo a fazer em obras como a franquia Ocean’s ou até mesmo mais recentemente com Logan Lucky; por outro lado, a utilização de um app enquanto suporte narrativo de uma série televisiva é suficiente sugestiva para que se possa falar numa nova fase da sua carreira. É verdade que não há aqui nada de fundamentalmente novo, mas ainda assim não se pode deixar de ficar com a impressão de que Soderbergh continua a ser uma figura absolutamente relevante na discussão à volta do lugar do cinema nas nossas vidas. No limite, o cerne da questão pode mesmo ser enunciado em termos espaciais: já não aquela incógnita a que ninguém soube realmente responder do “o que é o cinema?”, mas antes um novo horizonte – “onde está o cinema?”. Ainda que não tenha explorado a app tanto quanto desejei (que em todo o caso nunca chegou a ser lançada, até à data pelo menos, no mercado português), a sensação com que se fica é que este acaba por ser um momento particularmente representativo daquilo a que alguns teóricos têm vindo a designar como “pós-cinema”. Não tanto pelo arrojo estético da série, mas sobretudo por ser um realizador do estatuto comercial (e artístico) de Soderbergh a trazer para o centro da discussão pública algumas destas questões. Francesco Casetti é uma dessas figuras que tem vindo a identificar a “relocalização” do cinema para outras plataformas, do DVD aos enormes ecrãs digitais das grandes praças públicas (e por aí fora), enquanto uma das configurações possíveis dessa condição. 

Cinema: não só não morreu, como afinal está em todo o lado.