Sexta-feira, 29 Março

«Top of the Lake» – nova temporada, nova cidade, nova forma

A segunda temporada de Top of the Lake, a mini-série criada para televisão pela mão de Jane Campion (The Piano, Bright Star) deixa a paisagem inóspita da Nova Zelândia da primeira temporada. A história retoma-se na cidade de Sidney, um ambiente urbano sugestivo e adequado à continuação da personagem de Elizabeth Moss (Mad Men, Handmaid’s Tale) na televisão e mais recentemente no cinema com The Square de Ruben Östlund): a Inspectora da Polícia Robin Griffin.

Neste segundo fôlego, Campion é mais prosaica, mais ardilosa, jogando mais com os códigos da linguagem televisiva, ao contrário de China Girl ( a primeira temporada) que era mais contempletiva. Acho que se pode dizer que havia mais cinema na 1ª temporada, e que agora temos mais televisão, o que, neste caso, é bom.

Por exemplo a relação de Griffin com a colega agente da polícia Miranda Hilmarson (uma fenómenal Gwendoline Christie, conhecida anteriormente pela série Game of Thrones), o que poderia ser uma relação típica de uma qualquer série policial, não o é: duas mulheres, nos antípodas uma em relação à outra, para além da diferença de altura evidente.  Não existe aqui espaço para piadas feministas nem desilusões amorosas, são duas mulheres numa missão, que se vão tolerando, que não cedem a clichés… Jane Campion tout court.

É uma série sobre a maternidade, mães que querem ser e não podem, as que são – e assustadas se negam, e as que desesperam. Aparentemente simples, as histórias de Jane Campion giram à volta de mulheres, ainda que muitas vezes subjugadas, violentadas, são também, vulneráveis, mães, nunca caindo no engodo do preconceito de género… no universo de Campion ser mulher não pretende explorar quaisquer dicotomias de género; são acima de tudo as diferenças do ser humano – seja homem ou mulher – que lhe interessam: alguém e a sua relação consigo e com os outros, os seus medos, traumas, desejos sexuais, fantasias. É uma coincidência pura, que sendo Jane uma mulher, as suas personagens principais sejam elas também mulheres.

A trama pisca o olho às redes de barrigas de aluguer ilegais, a exploração e objetificação de mulheres asiáticas pela sociedade australiana, um tema recorrente na obra de Campion. São mulheres claramente perdidas entre o país que deixaram e uma sociedade moderna como a australiana, que, por ser moderna, não exporgou ainda os complexos raciais – em particular com a emigração asiática.

Para além de uma história que vai prender o espectador comum, o que resiste portanto é a visão dilacerante, tão característica da realizadora, e um olhar clínico sobre esse evento que é tão bonito quanto assustador, tão singelo quanto avassalador: a maternidade, ser mãe hoje, num mundo que continua dominado pelo género masculino, sem apresentar um pingo de comiseração por estas mulheres. É por isto tudo que Top of the Lake fala mais ao espectador habitual de séries de televisão que porventura a primeira temporada: mais hermética, contemplativa, talvez mais poética.

Jane Campion prova que é possível fazer-se televisão de excelência sem ceder um milímetro da sua visão muito própria, e só por isso, vale a pena seguir estas personagens que concerteza transcendem qualquer sentido perjurativo que a palavra televisão pudesse carregar. 

A primeira temporada de Top of the Lake passou em Portugal na RTP com o nome de As Margens do Paraíso, desconhecendo-se se está na calha a segunda temporada, podem vê-la na BBC.

 

Carlos Abreu

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