Terça-feira, 19 Março

Retrospetiva Abel Ferrara: Capulettos em Chinatown («China Girl», 1987)

Se Nova Iorque é uma personagem central do cinema de Abel Ferrara, a multirracialidade teria de o ser também – por extensão. Os cerca de 30 planos sob os créditos iniciais de “China Girl” definem o filme. O primeiro é fixo: um arranjo de flores e frutas em volta de uma santa padroeira qualquer, mais duas bandeiras dos Estados Unidos. Duas noções que se revelarão falhas ao longo do filme: a do sentido de pátria e a de comunidade religiosa.

A partir daí inicia-se uma narrativa visual de histórias intercaladas: fachadas de velhos restaurantes italianos de um lado da rua (um deles chama-se Ferrara, atribuindo um irónico traço de identificação pessoal), chineses que se movimentam no outro. Um oriental passa com uma enorme placa – estabelecendo uma espécie de barreira entre dois mundos; enquanto o reclame de um tradicional restaurante italiano é substituídas por um novo (“Canton Garden”), os habitantes antigos são apanhados em closes que, entre o perplexo, o triste, o abananado, assistem a instalação dos “intrusos”. Termina com um plano aproximado de um dos protagonistas, Alby (James Russo): olhar de desprezo. Fade-out: a guerra está anunciada.

Estabelecidos os elementos, é partir para a ação. Em termos de duração de planos e sequências (em que pese a longo trecho na discoteca), esse é um dos mais acessíveis do realizador. Essencialmente, vai tratar de uma disputa territorial onde permanentemente estarão em diálogo a modernidade paradoxalmente expressa nos acordos de comércio e não-agressão entre velhos mafiosos de ambos os grupos e a tradição, presente na violência primitiva e xenófoba dos jovens.

Assim, em plena Nova Iorque do final do século XX tem-se o arquétipo de um conflito shakespeariano – já que, nem perdidos nem achados no meio da confusão, os jovens Tony (Richard Panebianco) e Tye (Sari Chang) decidem se apaixonar. Ela vítima do patriarcalismo/machista, um tema recorrente do cineasta; ele preso aos laços de solidariedade tribal com os “seus”. Os filmes de Ferrara são sobre brutamontes: essa rara love story vai beneficiar de algum tipo de condescendência?

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