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Doclisboa: a arte da vadiagem

Quem deambulava pelos caminhos do rock indie dos anos 80 há de lembrar-se de uma energética mistura de guitarras com eletrónica chamada “Infected”. Possuía sardónicas (e rudes) referências à SIDA, um dos temas do momento, vaticinando: “In-fec-ted me with your looooove…

Matt Johnson, o homem por trás dos The The, vendeu muitos álbuns na altura, arranjou polémicas com a sua militância política (“Sweet Bird of Truth”, por exemplo, era um violento ataque à política externa americana em plena altura do bombardeio à Líbia e acabou “engavetada” pela Epic até a confusão passar) e fez tours mundiais. A meio do filme uma fã norueguesa lhe dirá que o álbum, de 1986, “mudou a sua vida“. É sobre um momento da sua vida que se desenrola The Inertia Variations, que tem sessão no âmbito do Doclisboa dia 27, no cinema São Jorge.

Continuando com “Infected“: “I’ve got to much energy to switch off my mind… but not enough to get myself organized“. Palavras proféticas: em algum momento a “energia” para desligar a mente começou a operar a pleno. Depois de “Mind Bomb“, de 1989, o desinteresse progressivo de Johnson pela carreira ganhou novos contornos com um acontecimento trágico – a perda repentina do irmão mais novo em 1988. Ele diz aí ter “perdido a fé no futuro“. De qualquer forma, os The The lançaram mais dois álbuns nos anos 90 – um deles de covers de Hank Williams – mais um no ano 2000.

A longa aprendizagem para não fazer nada

The Inertia Variations trata do processo de criação (ou falta dela) ao longo de muitos anos. Há um guru inspirador, o poeta John Tottenham, que além do poema de onde o título do filme foi extraído costuma atualizar o seu blog com inspiradores conselhos para enaltecer a arte da vadiagem. Estes incluem momentos da sabedoria como “Born winner, self-made loser“, “A long hard lazy apprenticeship of doing nothing“, “Chair, Sofa and Bed“… e por aí adiante.

Johnson orgulha-se da capacidade de deitar no sofá e olhar para o teto horas a fio. Mas o filme não é tão bem-humorado quanto parece: o músico, que nos The The chegava a tocar todos os instrumentos numa música, não está totalmente satisfeito com longos períodos onde não faz rigorosamente nada. Caso contrário, não haveria filme.

O lamentável estado da democracia ocidental

O projeto, realizado pela ex-mulher do artista, Johanna Saint Michaels, acompanha-o no momento de criação de uma rádio alternativa. “É irónico“, diz ele, “agora as pessoas não acreditam nos meios de comunicação social do Ocidente e buscam notícias verdadeiras em canais da Rússia!“. A Cineola tem esse papel: boas bandas tocam ao vivo, poemas são lidos e, claro, muitos depoimentos de ouvintes arengam com relação ao lamentável estado da democracia atual.

De resto Johnson continua a escrever canções que nunca termina, letras que nunca ganham uma música. Perambula por Londres, reclama da cidade estar engolida pela especulação imobiliária (o filme não mostra, mas ele tornou-se ativista pela preservação do East End), desculpa-se junto com o realizador de telediscos Tim Pope pelas “mulheres-objeto” dos seus vídeos dos 80s e, sombriamente, o filme acaba por apanhar a morte de outro irmão de Johnson – com quem ele trabalhava no momento e que foi responsável pela arte das capas dos seus discos.

No “mundo cá fora” os The The ressurgiram e anunciaram dois concertos para o próximo ano. Um novo álbum deve sair, assim como uma série de material ligados à Cineola: ao que parece a inércia, nas suas infinitas variações, começa a perder terreno.