Quinta-feira, 18 Abril

Doclisboa: Whitney Can I Be Me – crónica de uma tragédia-cliché

Artista famosa não suporta a pressão. Tem uma mãe dominadora. Está cercada de parasitas. A única amiga verdadeira é suspeita de ser sua amante.

O desejo de ter uma familia normal faz a artista famosa agarrar-se a um Outro idealizado. Que, certamente, não corresponderá. A artista famosa é o centro de uma máquina em andamento. Não pode parar ou toda a gente deixa de ganhar dinheiro. Não importa como se sente. A artista famosa tem uma filha; ser mãe não é uma mera questão de vontade. A artista famosa sequer conseguirá que a filha tenha um destino melhor que o seu.

A história triste de Whitney Houston seria apenas um filme-cliché se não fosse verdadeira. Ninguém nos anos 80 parecia notar: Whitney veio do gueto. A primeira coisa a fazer quando se quer que ela transcenda o audiência negra e transite para o mainstream é apagar as suas raízes. É o que lhe é pedido e é o que ela faz: representa um papel. Assim, logo de início lhe é arrancado o primeiro traço da sua identidade. Fundamental dentro da ideia exposta pelo realizador Nick Broomfield no título do seu filme. Depois de um episódio duríssimo, a vaia no Soul Train (para os negros ela era uma traidora), ela vai lançar ao produtor uma pergunta retórica na elaboração do álbum a seguir: “posso ser eu“?

Todos os entrevistados avançarão respostas para a escolha de Whitney por um caminho sem volta. A religião, tal como compreendida por ela e sua família tem um papel fundamental na sua derrocada. Os dogmas são baseados em “verdade reveladas” repletas de medo e preconceito. Há quem sugira pelo filme que talvez ela estivesse vive se tivesse assumido uma relaçao com Robyn Crawford, sua amiga de infância. Tal jamais seria suportado por alguém. Tempos mais tarde ela tentará a família idealizada de todo o temente a Deus. Ingénua ela fará,claro, uma má escolha.

Antes disto, uma cantora da sua banda resume a situação de uma forma brutal: “A mãe dela estava muito contra. Clive (o produtor) estava muito contra. Porque não era bom ter um caso lésbico. Acho que que se ela fosse artista hoje, não teria problema. Estaria tudo bem. Provavelmente ainda estaria aqui. Mas a essa altura, havia uma pressão tremenda para ela ser a rapariga perfeita. 

Tornou-se um conflito e é interessante, porque há as drogas, há esta família consumida pelas drogas, e mesmo assim é na homossexualidade que eles se focam. Quando teria sido melhor tentar lidar com essas drogas do que, provavelmente com isso. É de novo aquela religião, a religião feroz que, eu penso, que Cissy tinha, que era muito importante para ela, Ela era uma anciã na igreja, a filha não podia ser homossexual”.

Outro momento: Whitney procura desesperadamente por Deus, mas este náo é de forma alguma o Deus que ela precisava: é um ser esmagador, que a cobra por ter lhe dado um dom e ela não sabe cuidar dele.

Quanto a Bobby Brown, a ingenuidade da cantora é tocante: num “talk show” ela diz que ele tinha tido outras mulheres como qualquer homem mas, agora, tinha ganho juízo e decidido “assentar e ter uma família“.

Talvez a cena mais “aterradora” e surreal desta trajetória para o caos seja protagonizada pelo seu pai. Não se encontra tão facilmente episódios assim: moribundo num hospital, a última coisa que se lembra de fazer é processar a própria filha. Já a morrer, demanda que ela lhe pague o que lhe deve. Nas suas contas são 100 milhões de dólares. A vida da artista famosa tinha, afinal, um preço.

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