Terça-feira, 19 Março

«The Young Pope»: As 10 obras de Arte do genérico inicial e a sua iconografia

 

A série criada e realizada por Paolo Sorrentino para a Sky Atlantic, HBO e Canal+ é uma pérola a vários níveis. Critica e ousada, nela seguimos o jovem Papa Pio XIII (nome real: Lenny Belardo, interpretado por Jude Law) que é um órfão pouco liberal, que fuma e bebe Coca-Cola Cherry. A sua grande “missão” é a de restaurar o poder e a autoridade da Igreja. Lenny quer que a Igreja volte a ser fechada abdicando dos golpes de marketing do Vaticano e proibindo o uso público da sua imagem.

O cenário principal é o Vaticano e, caros leitores, isso implica que uns olhos mais atentos tenham muitas referências à fabulosa coleção de arte do Estado da Cidade do Vaticano, a sede da Igreja Católica.

Mas a série vai muito mais além dessa sede e o primeiro encontro com a Arte acontece logo no genérico inicial através de 10 obras. 10 obras escolhidas a dedo e cujo elo de ligação à série, tentarei explicar: 

1) Gerard van Honthorst | Adoração dos Pastores 

Elo de ligação à série: Baseada no Evangelho de Lucas, a Adoração dos Pastores é um dos episódios do nascimento de Cristo mais frequentes na iconografia da arte cristã. Representa o “testemunho” da Natividade de Jesus. No centro da composição está a figura do Menino Jesus deitado e para o qual se dirige o olhar de todas as personagens representadas, tal como nós, espectadores, olhamos para Lenny Belardo e assistimos ao seu “nascimento” como Papa. 

2) Pietro Perugino | Entrega das chaves a S.Pedro

Elo de ligação à série: Claves regni caelorum, As Chaves do Reino dos Céus é um termo usado no Evangelho de Mateus, 16:19, em que Jesus diz ao Apóstolo Pedro: “Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligardes na terra, será desligado nos céus“. Na linguagem bíblica, “chave” é sinal de autoridade e Cristo concedeu-a a São Pedro e aos seus sucessores, os Papas, para governar a Igreja. Lenny tem claramente a chave e o poder que este objeto simboliza! 

3) Caravaggio |  Conversão de São Paulo, a caminho de Damasco

 

Elo de ligação à série: Pintada entre 1600 e 1601 para a Igreja Santa Maria do Popolo, narra o momento da conversão de Saulo (Paulo) ao Cristianismo. Derrubado do seu cavalo por uma luz celestial a meio da viagem pela estrada que conduzia a Damasco. É uma das obras mais polémicas de Caravaggio porque o artista recria o episódio bíblico, concentrando-o no elemento humano e não no divino. 

Na iconografia bíblica, Damasco representa Cristo mas também representa o processo de conversão de Paulo. Através da história da cidade é possível descrever a vida do velho e do novo homem. O Papa Pio XIII quer claramente que haja um Vaticano antes do seu papado, um durante e um depois. 

4) ? | Concílio de Niceia

Elo de ligação à série: Convocado pelo Imperador Constantino I, o Primeiro Concílio de Nicéia foi o primeiro Concílio Ecuménico, que significa universal, já que nele participaram bispos de todas as regiões onde existiam cristãos. Em 325, na cidade de Niceia da Bitínia (atual İznik, Turquia), foi estabelecida a questão cristológica entre Jesus e Deus, o Pai; o estabelecimento da doutrina Papal, ou Estado, a fixação da data da Páscoa, a promulgação da Lei Canónica e a construção do Credo Niceno (profissão de fé) que ficou registado nas Atas e que todos conhecemos (mesmo que não sejamos crentes): “Cremos em um só Deus, Pai todo poderoso, Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis; E em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho de Deus, gerado do Pai, unigênito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial do Pai (…) 

Todos os bispos que se opuseram ao estipulado pela maioria no Concílio, sobretudo o que diz respeito à divindade de Cristo e à Santíssima Trindade, foram exilados. E caros leitores, se há coisa que Belardo ao longo dos 10 episódios da primeira temporada de The Young Pope faz é dar passagens de avião para lugares longínquos àqueles que não concordam com as suas diretrizes ou que não se comportam de forma 100% cristã.  

5) Francesco Hayez | Pedro, o Eremita numa mula branca com um crucifixo na mão e circulando pelas cidades e vilas a pregar durante a Cruzada

Elo de ligação à série: Pedro, o Eremita ou Pedro de Amiens foi um monge francês e um dos principais pregadores da Primeira Cruzada. Foi um dos sobreviventes do movimento extraoficial da Primeira Cruzada intitulado a Cruzada Popular ou Cruzada dos Mendigos cujo objetivo foi o de libertar Jerusalém do domínio muçulmano, mas a maioria deste grupo de peregrinos da Europa ocidental foram mortos ainda na Anatólia. Sobrevivente ao massacre, Pedro juntou-se à Cruzada dos Nobres e conseguiu cumprir o voto máximo do cruzado, o de visitar o Santo Sepulcro em Jerusalém. 

Os detalhes historiográficos em torno da vida de Pedro não são muito exatos, sobretudo pela falta de fontes, mas parece ser aceite que este monge, pregador e guia espiritual era um homem austero e venerado pelos cristãos da sua época. Como consequência dos seus sermões eloquentes, conseguiu convocar um exército de homens, mulheres e crianças que liderou na Cruzada. Obviamente que a inspiração do jovem Papa é óbvia: voltar a unir os crentes por uma única causa e combater os infiéis com veemência e sem adereços, que obviamente inclui o não uso da sua própria imagem para fins mercantis. 

6) Gentile da Fabriano | Estigmas de São Francisco

 

Elo de ligação à série: São Francisco de Assis, um dos homens cujo modo de vida mais se aproximou de Cristo, foi o primeiro estigmatizado, ou seja, ainda em vida recebeu as marcas das cinco chagas de Jesus pregado na cruz, que surgem nas mãos e pés, costas (marcas das chibatadas) e cabeça (marca da coroa de espinhos). As chagas só se manifestam nos Santos, pessoas que procuraram em vida a verdadeira identificação com Cristo. O recurso a esta pintura é sem dúvida alguma uma provação aos falsos “profetas” e “santos” que ainda hoje existem e são usados pelos crentes (sobretudo os mais necessitados) como objetos de devoção.  

7) Mateo Cerezo | Santo Tomás de Vilanova a distribuir esmolas 

Elo de ligação à série: Frei Tomás García Martinez ou São Tomás de Villanueva, (1488 – 1555), foi um pregador espanhol, escritor ascético e membro da ordem dos Agostinhos. Este Santo nasceu no seio de uma família abastada mas nunca usufruiu dos bens familiares. Conhecido por praticar a caridade, especialmente com os órfãos, com as donzelas pobres e sem dote, e para com os doentes. O Imperador Carlos V nomeou-o bispo de Valência e baseou o seu trabalho nos ensinamentos de Paulo e nos exemplos de grandes bispos da antiguidade cristã: Agostinho, Ambrósio e Gregório Magno. Nas suas aparições e sermões, São Tomás de Vilanova tinha uma espécie de êxtases que contribuiu para aumentar a veneração que por ele sentiam.  

É na obra escrita “Comentario al Cantar de los Cantares” que o fictício Papa Pio XIII cruza caminhos com São Tomás. Nesta obra o Santo define os seis graus progressivos dentro de uma vida mística: “Fé, Devoção, Embriaguez, Inação, Sonho, e Êxtase“. Lenny Belardo subiu muitos degraus místicos, alguns mais que uma vez…  

8) Domenico Cresti | Michelangelo apresenta ao Papa Paulo IV o Modelo da Basílica de São Pedro 

Elo de ligação à série: Neste quadro, Domenico Cresti, ou Il Passignano, mostra o momento em que Michelangelo mostra ao papa um grande modelo para a cúpula da Basílica de São Pedro no Vaticano. Atrás do artista estão retratados Luca degli Albizi (político e mercante italiano) e Giovanni Altoviti (banqueiro e mecenas italiano). Giovanni Pietro Caraffa foi o Papa Paulo IV (1476 – 1559) que se dedicou à Inquisição romana, fundada por Paulo III e à reconstrução administrativa e moral de Roma. Exerceu com rigor a censura dos livros e publicou o primeiro índex dos livros proibidos. Teve conflitos com Carlos V, não reconheceu o título imperial de Fernando I e cortou relações diplomáticas com Elisabeth I de Inglaterra. 

Parece claro que Lenny Belardo tem como objetivo repetir – em certa forma – a austeridade de Roma e o afastamento entre a Igreja e a Política / Diplomacia externa.  

Paulo IV morreu em 16 de Agosto de 1559 com 83 anos, em Roma e foi enterrado na Basílica de São Pedro e mais tarde transladado para a Basílica de Santa Maria sobre Minerva.

O povo romano odiava-o de tal forma que a sua estátua no Capitólio foi decapitada e até teve direito a um “poema”:  

Caraffa, odiado pelo diabo e pelo céu,
está enterrado aqui, com o seu cadáver em decomposição.
Erebus assumiu o espírito.
Odiava a paz na terra, a nossa fé contestou.
Arruinou a Igreja e as pessoas, homens e céu ofendeu.
Amigo traiçoeiro, suplicante com o exército, que lhe foi fatal.
Quer saber mais? Papa era ele, e basta. 

9) François Dubois | O Massacre de São Bartolomeu

Elo de ligação à série: A referência a um dos episódios mais violentos da História Moderna da Europa não é muito clara no contexto The Young Pope.  Na Noite de São Bartolomeu de 1572 milhares de protestante huguenotes foram massacrados por ordem da família real francesa. Parece ser inevitável associar a relação entre este e o modus operandis de Pio XII a Catarina de Médicis. A rainha-mãe está representada no quadro, no canto superior esquerdo da imagem, que trajada de preto, contempla a carnificina.  

Ninguém ignorava a influência que ela exercia sobre o filho, e a misoginia e a xenofobia concorriam para fazer dela o perfeito bode expiatório: foi aquela aventureira sem escrúpulos, vinda da Itália, que arrastou para a lama a monarquia francesa. Imaginavam-na traiçoeira e astuta como todos os florentinos e desconfiavam que fosse discípula de Maquiavel. Dizia-se, inclusive, que tinha educado os filhos de acordo com os ensinamentos do Príncipe, e o massacre foi visto como “a aplicação do preceito de Maquiavel de que é necessário cometer todas as crueldades necessárias de uma só vez“(CRAVERI, 2007, p. 55). 

10) Maurizio Cattelan | A nona hora

Elo de ligação à série: La Nona Ora de Maurizio Cattelan é uma efígie em tamanho real do Papa João Paulo II a ser derrubado por um meteorito e é uma das instalações artísticas mais polémicas dos últimos tempos. A figura realista do Papa João Paulo II, com paramentos e insígnias (cruz papal) características do cargo são esmagados por um fragmento espacial. A cena é bastante sensacionalista e dá aso a uma grande variedade de interpretações narrativas. O título da obra é tradicionalmente significativo na Liturgia das Horas da Igreja Católica que, entre outras coisas, sugere o luto e a suposta hora da morte de Cristo. 

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