Terça-feira, 19 Março

«L’Armée des Ombres»: O respeito pelo silêncio da Resistência

Com uma enorme crueza, uma mescla de elementos históricos e ficção, uma paleta de cores que acentua a dureza e frieza do meio que rodeia os protagonistas, “L’armée des ombres” (“O Exército das Sombras“) coloca-nos diante de um grupo da Resistência Francesa que procura sobreviver em plena II Guerra Mundial. Mais do que procurar apresentar uma visão romântica do combate da Resistência aos Nazis, a obra coloca o espetador perante um conjunto de personagens que vive em constante sobressalto, enquanto cada elemento é obrigado a tomar decisões complicadas, sejam estas fugir, manter o silêncio, denunciar ou eliminar companheiros.

Tendo como base o livro homónimo da autoria de Joseph Kessel, um membro da Resistência Francesa, “L’armée des ombres” é o terceiro filme onde a França Ocupada surge como pano de fundo para o enredo de uma obra cinematográfica realizada por Jean-Pierre Melville (as outras duas são “Le Silence de la mer” e “Léon Morin, prêtre“). O enredo tem início a 20 de outubro de 1942, com Melville a efetuar uma representação relativamente fiel da época e a abordar a luta pela sobrevivência de um grupo da Resistência, enquanto explana a complexidade destas células. Cada um tem de seguir as ordens à risca, o silêncio entre estes elementos por vezes é de “ouro”, enquanto as suas vidas são colocadas constantemente em perigo ao serviço de uma causa que consideram maior.

O início do filme é marcado por Philippe Gerbier (Lino Ventura), um engenheiro que lidera uma célula da Resistência, a ser transportado para o interior de um campo de prisioneiros por elementos da França de Vichy, enquanto a chuva embate fortemente sobre o veículo e exacerba a faceta lúgubre da situação. O quotidiano degradante dos campos de prisioneiros é exposto de forma seca e exemplar, com a cinematografia a adensar as cores frias e esbatidas, enquanto somos colocados perante um cenário que conta com um conjunto heterogéneo de prisioneiros. Não faltam franceses comunistas e apoiantes de Charles de Gaulle, argelinos, polacos, ciganos, entre outros, com Gerbier a procurar traçar um plano de fuga.

Lino Ventura consegue transmitir a aura de respeito e experiência deste indivíduo que é considerado apoiante de Charles de Gaulle, um engenheiro que revela uma frieza exímia em momentos onde as emoções nem sempre parecem fáceis de controlar. Veja-se quando ele é transportado para ser questionado, como quem diz, torturado, e consegue eliminar o guarda com uma facada e correr de forma astuta em direção à liberdade temporária. O design de som é relevante para o impacto destes momentos: o som do relógio é sentido enquanto Gerbier se encontra na sala de espera, com a fuga a ser marcada pelo “ribombar” dos seus sapatos no solo ao mesmo tempo que o protagonista corre em direção a uma barbearia. Mais tarde, encontramos Gerbier reunido com Félix Lepercq (Paul Crauchet) e “Le Bison” (Christian Barbier), dois elementos desta célula situada em Marselha, tendo em vista a capturarem e eliminarem um jovem integrante da Resistência que denunciou o primeiro às autoridades de Vichy, algo que permite exacerbar uma temática transversal a diversas obras de Melville – nomeadamente, o valor do silêncio.

No caso de “L’armée des ombres“, o silêncio é vital para manter o funcionamento de um grupo da Resistência durante a II Guerra Mundial. O filme não concentra as suas atenções nos grandes discursos ou nas ações bombásticas contra os elementos da França de Vichy, mas sim nas dinâmicas intrincadas que envolvem o funcionamento de uma célula da Resistência, com Melville a realizar uma obra cinematográfica que tanto tem de crua como de intensa e complexa, onde controla todos os pormenores de forma minuciosa. Os planos são bem arquitetados, os cenários decorados e utilizados com eficácia, a cinematografia contribui para adensar a representação algo crua do quotidiano destes indivíduos, enquanto o elenco tem espaço para exibir algum do seu talento. A relação entre o cineasta e Ventura era nula, devido a um desentendimento entre ambos em “Le deuxième souffle“, embora o ator tenha um desempenho notável, a par de elementos como Signoret, Cassel, Meurisse entre outros.

Se a relação entre Melville e Ventura não era a melhor, já a maneira como o cineasta explora as relações entre estes membros da Resistência e a procura de manterem a organização a funcionar é algo que roça a perfeição. Observe-se o momento em que encontramos dois personagens a preferirem manter o silêncio e serem torturados ao invés de falarem, com a dupla a exibir uma enorme integridade, enquanto “L’armée des ombres” expõe o esforço de algumas destas figuras, bem como os atos mais duros que cometiam ou sofriam. 

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