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Darren Aronofsky: A obsessão artística e religiosa e a busca de um Paraíso

 

mother! [1] tem sido acolhido como um caso de amor-ódio como há muito tempo não se via. E também como um filme único. Mas se olharmos com melhor atenção, Darren Aronofsky, o seu realizador, já tinha as peças montadas na sua obra anterior. A sua obra é dotada de uma intertextualidade fascinante que há que reconhecer, ame-se ou odeie-se o método.

O seu jorrar de ideias neste seu último filme, é assim um gesto de anti-decantação intencional (para o desagrado de muitos) que é em simultâneo a suma de todo o seu trabalho. Eis algumas pistas/provas.

Aviso: Este texto conterá a partir de agora spoilers (i.e. discussões sobre pontos-chave dos filmes) para mother!, Noah, Black Swan e The Fountain.

 

Obsessão e Religião

Numa famosa sessão recente de perguntas e respostas entre o realizador William Friedkin e Darren Aronofsky [2], a propósito da exibição do filme para a Guilda dos Realizadores norte-americanos, para consideração deste para prémios, Friedkin fez várias vezes a mesma pergunta por outras palavras até chegar a perguntar com todas as palavras: “Acreditas em Deus?“. Aronofsky, vindo de uma educação cultural judaica, após ter-se desviado de responder “sim“/”não“, respondeu: “Porque é que te importas? (…) Acreditas em possessão?” (respondendo a esse pequeno filme feito por Friedkin sobre possessão demoníaca chamado The Exorcist). 

A resposta veio mais explícita em entrevista a The New York Times [3]: “Não sou religioso mas acredito que a Bíblia tem grandes histórias que pertencem à Humanidade“.

A verdade é que, encarando mother! como alegoria ao poder da religião via Bíblia, esta é a terceira vez que o realizador explicitamente trata a obsessão religiosa como algo que pode ser facilmente ligado à obsessão artística (e em mother! são uma e uma só, de uma forma perversa, e eternamente ambígua). Tanto The Fountain (abrindo com uma citação do livro de Genesis) como Noah (Noé recontando a história da Criação do homem aos seus filhos, incluindo a de Caim e Abel – ver imagem abaixo) citaram diretamente da Bíblia para ligar os perigos da obsessão artística aos perigos que se possam esconder por detrás do fanatismo religioso.

The Fountain (2006), com todo o seu esoterismo, baseia-se numa teoria simples que oferece outra chave para mother! – a conceito de “Árvore da Vida”, ser no fundo um simbolismo Maia para a Mãe Terra em fusão com a história bíblica da criação da primeira mulher. E falava de renovação, já aqui puxava a agenda ecológica juntamente com o texto religioso. O inquisidor espanhol deste filme é interpretado por Stephen McHattie, que surge posteriormente como chefe do “culto” criado em torno do “Criador” interpretado por Javier Bardem em mother!.

O pó amarelo que se mistura com água para formar um líquido esquisito bebido pela personagem de “mãe” representada por Jennifer Lawrence para acalmar o stress (imagem acima) pode possivelmente fazer uma primeira aparição aqui também. A história de The Fountain é também uma de criação literária e de obsessão artística, invertendo aqui curiosamente o género – é a mulher (Rachel Weisz, que teve um relacionamento amoroso de nove anos com Aronofsky, de 2001 a 2010) que escreve o livro, mas não o consegue acabar, pedindo ao marido para o acabar. “Finish it” (“Acaba-o“) é repetido várias vezes, como um mantra. E ele/Aronofsky completa-o, por amor.  

Noah (2014), exibido de uma forma segura nos domingos de Páscoa, pode até não ser assim tão seguro como o produto que foi vendido inicialmente. Mostra, numa potencial interpretação agnóstica/ateia, o milagre de uma visão como episódio psicótico, sobretudo no contexto da obra anterior do autor. As visões divinas de Noé que o conduzem à criação humana e artística de uma Arca para salvar os animais do dilúvio divino são lá está, “apenas” uma grande história para Aronofsky jorrar a sua dose de psicoses artísticas. Noah tem também um prenúncio para o momento mais imoral do clímax mother!, no sacrifício explícito de um animal por parte de uma multidão no segundo ato do filme. Outro eco desse sacrifício divino marcante surge no final de Noah: Noé, no auge do “delírio”/visão, assume que a única maneira de salvar a Natureza e os animais (todos eles livres do pecado que afeta a Humanidade, claro) é precisamente acabar com a Humanidade, sacrificando-se a si até aos seus últimos descendentes (bebés!).

Por falar em Bíblia, uma das leituras mais “superficiais” (i.e. óbvias) de mother! aponta a que seja uma adaptação integral da Bíblia, do Livro de Genesis até ao Livro da Revelação, partido claramente entre dois momentos (numa das muitas marcas características do autor: o fade out da cena para branco) para sinalizar a transição do Antigo Testamento para o Novo Testamento. Ou seja, tanto uma prequela como uma sequela de Noah.

 

Cisne Branco/Cisne Negro (feio)

Aronofsky nunca foi conhecido por se conter, mas há de facto algo de diferente do homem que há 7 anos atrás soube converter o “queer” em Óscar, com Black Swan (Cisne Negro). Mas sabe-se agora que o bailado perfecionista do realizador servia de companhia perfeita para Nina, a bailarina igualmente perfecionista. Quando esta diz, em jeito de últimas palavras (da sua própria vida, e do filme): “I was perfect” (“Fui perfeita“), Aronofsky parece ter cedido também ele, no seu ego, a uma visão de perfeição teórica precisa. Mas não terá sido uma falsa perfeição? Não terá Aronofsky sido demasiado Cisne Branco?

Com mother!, o seu verdadeiro Cisne Negro parece ter emergido. Um cisne feio, barroco, mas de uma sensualidade esquisita, punk, difícil de ser posta em caixas, vinda de um caos que comunica em pleno com o mundo em que vivemos. (onde qualquer confronto da Humanidade, como a luta recente pela independência da Catalunha, possa ter aqui lugar).

Há também aqui um som em Black Swan que gera igualmente um eco em mother!: um som de crack que ouvíamos aquando da transformação da bailarina e que agora é outro crack, bastante mais imoral, que sinaliza a morte de um bebé para sacrifício (talvez o momento de comunhão mais arrepiante que o cinema já viu).

 

A busca de um Paraíso (ou nirvana, ou perfeição artística e numérica)

Este aqui é mesmo um tema central da sua obra: o sacrifício de corpos em busca de um Paraíso.

Este Paraíso terá conotações de acordo “história de fundo” dos seus personagens. Pode ser o nirvana provocado pela adição em drogas (Requiem for a Dream), ou pela adição num amor romântico que cumpra o mote “Together, we will live forever” (“Juntos, viveremos para sempre”) (The Fountain).

O Paraíso pode ser lido também como perfeição artística (Black Swan, The Wrestler), sempre tida como potencialmente autobiográfica (!). Ou matemática (Pi, como o número transcendente que é, existente em toda a Natureza). Ou pode ter uma conotação literal (Noah) como fuga a um apocalipse para salvar a Natureza.

mother! decidiu, num golpe de génio/loucura juntar todos estas dimensões da Criação, metendo até a forma espiral como obsessão matemática. É um golpe que no mínimo merece respeito.

 

André Gonçalves