Sexta-feira, 29 Março

3 ideias visuais em «Gattaca»

Meu espírito, toma cuidado. Nada de soluções violentas. Exercita-te! – Ah, a ciência não é suficientemente rápida para nós!Arthur Rimbaud, Uma Cerveja no Inferno.

Feito na altura em que o Projeto do Genoma Humano era motivo de grandes expetativas, mas também apreensões, Gattaca é a obra com a qual Andrew Niccol (o argumentista de The Truman Show) se estreou na realização. Neste filme biopunk, é retratada uma sociedade onde os indivíduos são divididos em dois grupos, os “Válidos” e os “Inválidos”. Os primeiros são seres concebidos in-vitro, geneticamente aperfeiçoados e aos quais lhes estão reservados os cargos superiores de cada empresa. Já os segundos são frutos do “amor natural”, descriminados e com empregos sem qualquer possibilidade de progressão de carreira. Vincent (Ethan Hawke), um “Inválido”, assume a identidade de Jerome (Jude Law), um “Válido” alcoólico e paraplégico, a fim de se infiltrar na firma que dá nome ao título do filme e concretizar o seu sonho de ir numa missão espacial para Titã, uma das luas de Saturno.

Niccol criou uma obra que pretende contrapor o livre-arbítrio e a vontade humana à possibilidade deste universo pré-determinista alicerçado em princípios eugénicos. Questiona assim as repercussões que o avanço tecnológico acarretado pela Engenharia Genética poderão provocar a um nível social e se, porventura, serão ultrapassadas pela determinação e esforço do indivíduo. É a poucos meses de completar o seu 20º aniversário que recupero o filme, onde pretendo destacar 3 ideias-chave sobre as quais é construído e como são transmitidas visualmente.

A colossalidade da pequeneza: o plano detalhe

Nas primeiras páginas do argumento (que pode ser consultado aqui), o começo do filme é descrito da seguinte maneira:

Somos confrontados com uma paisagem estéril e vazia. (…) Subitamente, sem aviso, uma presa de elefante cai do céu e embate no chão seco. (…) Noutra região, troncos de árvore começam a chover do céu. (…) A câmara começa a recuar longa e lentamente da pilha de presas de elefante. Elas são, afinal, unhas humanas ampliadas centenas de vezes. Os troncos de árvore são folículos humanos.

Cena de abertura de Gattaca. Enquanto os créditos decorrem, unhas (na imagem acima) e cabelos humanos (na imagem abaixo) ampliados centenas de vezes caem em slow- motion.

Embora não tenham ficado, talvez, tão claras estas associações no forma final do filme, as intenções de Niccol são explícitas: fazer do pequeno algo de uma proporção colossal, cujo efeito intimidante no espetador tem de provocar o receio pelo protagonista. Para transmitir essas emoções, o cineasta recorre ao dispositivo do plano detalhe, isto é, um grande plano muito aproximado de objetos, partes do corpo humano ou, neste caso, os materiais biológicos portadores de sequências genéticas. Não só na cena de abertura temos essas tais unhas e folículos em queda ampliados (símbolos da identidade genética) como, ao longo da obra, há a presença circunstancial de planos ocupados por pedaços de pele, cabelos e pestanas. Planos esses presentes em cenas onde a autenticidade da identidade de Vincent pode vir a estar comprometida.

 

Planos detalhe de vários tipos de material biológico humano: sangue, cabelos e pestanas.

A ascenção como superação

Como já referido, o sonho principal do protagonista é o de se tornar astronauta e partir num foguetão até Titã. Esta questão da “subida” ou “ascensão” vai sendo predominante visualmente ao longo do filme, principalmente através dos momentos em que ocorre o lançamento dos ditos veículos espaciais, filmadas (mas nem sempre) por contrapicados ou panorâmicas verticais. A certa altura é dito a Vincent “se queres fingir que não te interessa estares lá em cima, não olhes para lá“. Mas o espetador é justamente forçado a encaminhar o olhar em direção ao céu, passando assim a partilhar da vontade do protagonista em abandonar o patamar social inferior a que a condição genética lhe reservou.

A ascenção através do movimento do foguetão, em lançamento, filmado num contrapicado.

A panorâmica vertical que acompanha o movimento do foguetão. 

Esta questão da ascenção pode ser alargada até à já apontada semelhança entre a estrutura da escada presente no apartamento de Jerome e a de uma cadeia de DNA. Enquanto Jerome é recordado da sua incapacidade em subi-la devido à sua invalidez (desde o primeiro plano em que surge), Vincent não tem qualquer dificuldade em cumprir o seu trajeto. Jerome conseguirá, no entanto, subir a escada numa cena de forte suspense em que um enorme esforço e empenho o levam a isso para preservar a permuta de identidades entre si e Vincent. Dito de outra maneira, o movimento ascendente cumprido nesta construção é, não só uma metáfora visual de como o indivíduo ultrapassa a sua condição genética (no caso de Vincent), como é usado de forma perspicaz na narrativa, para salientar a superação da condição física (no caso de Jerome) pelo indivíduo, a partir da sua determinação, esforço e perseverança.

 A incapacidade física de Jerome em subir a escada que é salientado ao longo do filme.

 

Jerome sobe as escadas, superando a sua condição física.

A barreira no primeiro plano

A fragilidade da condição de Vincent é, necessariamente, a principal barreira que o separa do seu objetivo. Essa barreira vai ganhando formas materiais ao longo do filme, que se interpõe entre ele e os membros superiores desta sociedade. A primeira delas quando, ainda bebé, lhe é interdito o acesso a uma escola e é fechado um portão à sua frente. O pequeno Vincent agarra as grades do portão e a associação visual remete obrigatoriamente para a da porta de uma cela que o separa de um mundo igualitário. Noutro exemplo, já em Gattaca a trabalhar como contínuo, Vincent limpa uma janela e vê o reflexo dos funcionários a subirem uma escada rolante. O vidro desta janela é o que separa estas duas entidades humanas.

As barreiras físicas que separam Vincent dos “Válidos”.

É talvez com esta ideia de uma barreira que é, por fim, ultrapassada que o filme acaba, com um zoom-in à janela na parte superior do foguetão que, desaparece, acabando num plano contendo meramente as estrelas. 

zoom-in com que o filme encerra. A ilusão do desaparecimento da barreira física (as paredes do foguetão e a janela) para apenas ficarem as estrelas.

Duarte Mata

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