Sexta-feira, 29 Março

«The Driver»: Entra Depressa Nessa Noite Escura

Não há maior solidão que a do samurai, exceto a do tigre na selva. Talvez… Bushido: O Livro do Samurai
From the churches to the jails / Tonight all is silence in the world /As we take our stand /Down in Jungleland – Bruce Springsteen

A minha relação com os protagonistas dos filmes assemelha-se às que tenho com as pessoas na vida real. Quanto mais taciturnos forem, mais misteriosamente atraído me sinto por eles. É um leque de personagens não muito extenso, que passa pelo jovem Corleone no Padrinho II aos adolescentes introvertidos de Donnie Darko e Beleza Americana. E nele incluo também os dois primeiros filmes de Walter Hill, o magnífico Hard Times (1975), onde Charles Bronson interpreta um lutador de ruas vindo de uma cidade que nunca chegamos a saber o nome, e aquele que é, porventura, uma das obras-primas do cinema de ação estadunidense, The Driver (O Profissional, 1978).

Escrevo isto a propósito de Baby Driver que é a mais recente aquisição dos filmes assumidamente inspirados pelo de Hill e que, contrariamente à obra do veterano, tem vindo a ser bonificado por uma enorme aclamação pela parte da imprensa norte-americana. É assim agora, como foi há 6 anos aquando a estreia de Drive de Winding Refn, cujo formalismo hiperbólico chegou mesmo a sair premiado em Cannes. Não deixa de ser irónico que um filme que (para além de falhar financeiramente) tenha sido visto como pretensioso e criticado pelo seu simbolismo, acabe por exercer tanta influência em filmes que provocam reações do espetro oposto aos mesmos acusadores.

Mas falava de “o Condutor” (nunca sabemos o nome autêntico da personagem), interpretado pelo carismático Ryan O’Neal. Não há nada que o defina melhor como os primeiros 15 minutos de filme onde, após um assalto empolgante a um casino, foge pelas ruas de Los Angeles num carro com os assaltantes, esquivando-se à polícia de uma forma acrobática, mas sempre com pleno domínio das suas faculdades e das do veículo. É no final dessa perseguição onde, após receber o pagamento proposto e deixar os ladrões em porto seguro, que lhes avisa em tom perentório “There isn’t gonna be any next time… You were late.” O profissionalismo deste marginal está definido e manter-se-á inabalável na restante hora e um quarto da obra, onde seguiremos a busca determinada de um detetive (também sem nome, interpretado por Bruce Dern) em apanhar este fora-da-lei.

Western Contemporâneo

Ora, limitar The Driver ao rótulo de thriller ou filme de ação é bastante redutor. Hill, como o seu coetâneo John Carpenter, fez westerns a carreira toda sob a falsa aparência de outros géneros. Se “o Condutor” não tem nome, tal advém de uma outra referência a uma das personagens mais características do Oeste Selvagem cinematográfico, a do Homem sem Nome, interpretado por Clint Eastwood na “Trilogia dos Dólares” de Leone. Ambas as personagens são soturnas e estóicas na sua essência mas, quando levadas a isso, mostram-se capazes de recorrer à violência como defesa dos seus códigos de conduta, mesmo que para isso as normas sociais e éticas do ambiente em que se inserem sejam postas em causa. Ambos querem ser conhecidos pelo que (e como) fazem e não pelo que foram.

Levamos esta comparação a uma breve cena de tiroteio, onde, atrás da porta de um carro, a personagem de O’Neal dispara a sua arma à altura da cintura, num plano americano bem delineado, evocativo desse cinema de outrora. É a confirmação aguardada do que antes já tinha sido dito pelo “Detetive”: “Os criminosos de hoje em dia acham que são todos cowboys. Pensam que podem andar por aí a fazerem o que querem, onde querem. Pois eu vou apanhar o cowboy que nunca foi apanhado. O cowboy desperado.”

Em cima: Por Mais Alguns Dólares (1965), Sergio Leone. Em baixo: O Profissional (1978), Walter Hill.

Outros planos remetem ainda para esse universo. Impossível não associar a cena em que “a Jogadora” (Isabelle Adjani, a mesma de A História de Adèle H. de Truffaut) está no aeroporto, de chapéu preto colocado e a tomar café, às cenas de saloon dos filmes de Stevens ou Ford, onde a sensação de um conflito iminente, capaz de arruinar aquele estado ébrio do ambiente, crescia gradualmente. Mais ainda, um plano de conjunto numa garagem onde 3 agentes da lei aguardam, pacientemente, a chegada do marginal. A forma como as personagens estão colocadas nas suas diferentes poses e distanciadas entre si sem, no entanto, deixarem de cruzar olhares cúmplices, é remetente dos planos mais clássicos do género, onde um xerife e os seus adjuntos observavam de forma cautelosa as ruas empoeiradas da cidade que defendiam. Cidade essa cujo destino haveria de ser marcado irremediavelmente pela chegada de um cowboy solitário. Como cowboy solitário é “o Condutor”.

Em cima: O Homem Que Matou Liberty Valance (1962), John Ford. Em baixo: O Profissional (1978), Walter Hill

Em cima: A Paixão dos Fortes, John Ford. Em baixo: O Profissional (1978), Walter Hill

O Le Samouraï Americano

A referência é assumida por Hill e por isso este artigo inicia-se com a mesma frase com que Le Samouraï (Ofício de Matar, 1967) começa. O filme mais célebre de Jean-Pierre Melville, em torno de um assassino a soldo (Alain Delon) que se vê também perseguido pela polícia, acarreta várias semelhanças estilísticas e narrativas com o americano. Em ambos há uma rapariga como testemunha principal de um crime (um assassínio, no caso da obra francesa) que, mesmo sob o risco de ser acusada de perjúrio, mente para salvar o protagonista. Em ambos há um detetive empenhado a todo o custo em apanhá-lo, mesmo que para isso force a rapariga a alterar o seu testemunho. E, em ambos, o silêncio e a linguagem corporal das personagens é mais importante para o desenvolvimento da história do que aquilo que poderiam dizer.

Não só isso, como se notam certas reiterações visuais no estilo de Hill com o de Melville. A predominância do azul e das sombras da noite nos planos formam um jogo deleitoso de dedicada aplicação cinéfila. É o caso daqueles grandes planos obscurecidos onde os protagonistas, incapazes de ocultarem um certo lado protetor que nutrem pelas raparigas com que se cruzam, visitam-nas discretamente na sua quietude. Para além disso, o desconforto que as ruas da cidade lhes causam só se vê apaziguado por um quarto desprovido de qualquer decoração, onde a cama assume o principal relevo. 

Em cima: Ofício de Matar (1967), Jean-Pierre Melville. Em baixo: O Profissional (1978), Walter Hill

Entra Depressa Nessa Noite Escura

Mesmo quem foi detrator do filme aquando da sua estreia foi capaz de reconhecer o virtuosismo das suas cenas de perseguição. Hill tomou parte na produção de Bullitt, filme de Peter Yates com Steve McQueen onde a sua icónica cena de perseguição de 11 minutos, segundo o cineasta em entrevista, “ficou memorável não pelos stunts, mas por estar feita a partir do interior do carro, o que dá a sensação de que estamos numa montanha-russa”. Hill aprendeu com Yates e os inside shots de The Driver dão justamente essa impressão de tribulação, tendo-os alternado com planos gerais da cidade e outros com a câmara rente à estrada. O trabalho de montagem nestas cenas nutre, por cada plano, uma duração equilibrada e adequada que cria, no conjunto da découpage, um ritmo necessariamente mais hipnótico que açodado.

Mas se estas cenas causam tanto impacto, tal também se deve ao som. Contrariamente à de tantos filmes de ação que, com facilidade, recorrem a uma banda sonora não-diegética quase omnipresente, as de The Driver estão ausentes de música, sendo a sonoplastia domada exclusivamente pelo barulho das sirenes policiais, dos pneus a derraparem no asfalto, do embate dos veículos nas estruturas e objetos urbanos e pelo som dos motores, cada vez mais em esforço.

Uma das cenas de perseguição em O Profissional (1978). Em cima: um plano geral do carro na rua. Ao meio: um grande plano do espelho retrovisor onde se vê a chegada de um carro da polícia. Em baixo: um plano com a câmara rente à estrada.

Há ainda mais uma cena que não se pode deixar de referir, a da demonstração numa garagem onde “o Condutor” embate, de forma contundente, o carro contra paredes, pilares e bocas de incêndio. Enquanto o maravilhamento das cenas de perseguição provinha do uso da cidade como um espaço de corridas para exibição de arriscadas manobras, nesta é a claustrofobia do espaço que se dispõe sob a forma de arena de combate de um gladiador que não hesita em mutilar-se e àqueles que o acompanham. Hill demonstra a sua habilidade em filmar o espaço e uma precisão de relojoeiro na gestão de tempo para mostrá-lo. A découpage, a montagem e o som acabam assim por funcionar de uma forma simbiótica, onde nenhuma parte se sobrepõe às outras duas.

Por isso, The Driver não é um filme que se veja pelo realismo, não é um filme que se veja pela psicologia das personagens. Antes e apenas pela suprema arte do filmmaking. Arte essa influenciada, conforme apontou Dave Kehr por “Hawks, Bresson e Melville“. Vou mais longe nas referências e acrescento que “o Condutor” é um dos “filhos da noite” de Ray. Porque noites assim, com esta rebeldia e força, onde o asfalto quente clama pela febre dos marginais, são assombradas pelo espírito desconsolado e fatalista do noir. Anjos em fuga habitam noites como as de The Driver. Abracemo-los.

Duarte Mata

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