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Não, não me enganei com «A Cidade Perdida de Z»

De todos os filmes que passaram na última edição da Berlinale, aquele em que fui mais expectante foi A Cidade Perdida de Z. Numa secção paralela à noite, após um dia com três filmes da competição, uma conferência de imprensa e apesar da fadiga que já se acomodava ao fim de cinco dias de cobertura, nada disso abalou as esperanças que tinha para a sessão. Mas depois… apesar de toda a beleza que é inegável no cinema de James Gray, vi-me a lutar com o filme, respondendo negativamente ao estado de letargia em que era construído e para o qual não estava psicologicamente preparado. Uma experiência sofrível, portanto, que, pelo que me pareceu na altura, havia sido partilhada com quem me rodeava, com espetadores a demonstrarem a sua lassidão pelo bocejar, o olhar ocasional para o relógio, a ausência de aplausos no fim da sessão… Foi com base nessa luta interior e nas reações que aqui descrevo que escrevi, nessa noite, os dois [1]textos [2]mais dolorosos que me saíram nessa semana. E, no entanto…

Chegou o dia seguinte e com ele as primeiras críticas (algumas muito entusiastas), veio a conferência de imprensa onde alguém gritou “Congratulations! This is the best film in the Berlinale!” e a dúvida começou a instaurar-se-me… Estaria errado? Fui acompanhando a reação da imprensa enquanto o filme estreava em vários países e deparei-me com fortes defesas em França e em Portugal. Decidi, então, numa maior lucidez e quietude, revisitá-lo. Afinal, até alguns dos meus colegas pouco defensores do cineasta nova-iorquino, afirmavam que este era o seu melhor filme. E é, após uma nova visualização, cautelosa e mais racionalizada, que me vejo a confrontar as minhas palavras de então com as de agora.

Ora, que me enganei em alguns pontos? Admito que sim. Comecei por atacar o filme por concentrar a ação mais tempo na Inglaterra do que na Amazónia. O que, para além de falso, é injusto e prova de que fui com expetativas pré-concebidas que se revelaram prejudiciais aquando a visualização. Há, evidentemente, Amazónia o suficiente e Gray procura um equilíbrio temporal fílmico entre os dois espaços geográficos que tem de ser respeitado a bem da narrativa. Errei também quando disse, de uma forma descaradamente pedante, que “[as personagens] não têm a integração, pela luz e forma, no cenário em que se expõem”, quando Gray, como cineasta talentoso que é, esforça-se por criar uma harmonia cromática e fotográfica dentro do enquadramento, estando o filme com planos “bonitos” feitos numa estimável composição que lhe é característica. Enganei-me até na classificação inicial, onde estou disposto, com o peso da desilusão da altura passado, a dar mais uma estrela.

E, apesar das ideias de mise-en-scène e de montagem (panorâmicas verticais que mudam a ação do lar do protagonista para as trincheiras; travellings que alternam entre uma estação de comboios e o quarto da família), apesar de toda a sua portentosa pulcritude… Não me enganei quando disse que se tratava do primeiro filme fracassado do seu autor, bem como do seu pior trabalho.

É certo que James Gray é um cineasta quase anacrónico e singular no cinema americano. Mas as referências que se apontaram para este filme, de Herzog (que retratava a obsessão de uma forma maníaca, demente e, finalmente, autodestrutiva) a John Huston (cujas personagens, apesar de gananciosas, ganhavam a simpatia do espetador) não estão totalmente acertadas porque Gray está confiante que existe empatia pelo seu protagonista. Mas Charlie Hunnam não tem a selvajaria de Kinski nem o carisma de Bogart. Estranha-se assim, facilmente, a demonstração de insensibilidade às mortes a que Percy Fawcett assiste (o ataque das piranhas) quando retorna à sua terra-natal e com ela surge algo incoerente nesta personagem que, em súmula, é demasiado passiva para representar a monomania de um louco e suficientemente defeituosa para ser o exemplar de explorador heróico. Uma personagem onde temos quase tudo para gostar dela, mas que não nos absorve, que não nos estimula, que não nos cativa. E apetece aqui dizer “como o filme”.

Não me enganei nisso. Tal como não me enganei quando referi o ritmo moroso, o tom mais contido e interior em que é construído. Não me enganei quando disse que era um produto dissimulado na estratégia de marketing (vendo o trailer está lá a cena do ataque no rio pelas tribos indígenas, está lá a cena da primeira Guerra Mundial, mas que são das poucas em que se sente verdadeiramente o fulgor epopeico que se esperaria). Não me enganei com o excessivo número de diálogos, por vezes, apologistas de um politicamente correto embaraçoso (ao que parece resultaram, já que houve quem o intitulasse de um dos poucos cineastas feministas da atualidade [3]). E, finalmente, não me enganei quando denominei o final de anticlimático, uma vez que falha na apoteose espiritual e transcendente que pretendia. Pois, para funcionar e fluir devidamente, o filme inteiro precisaria de ser construído com o protagonista a querer alcançar algo sagrado, uma procura de paz interior que deveria estar saliente desde o começo, mas que aqui só em momentos muito, muito circunstanciais se refere (basta comparar este final com o do recente Silêncio e, independentemente dos defeitos deste último, ver qual dos dois está mais coerente com o que lhe antecede). Fawcett, tal como nós, não procurava atingir o Paraíso… Procurava apenas Z.

Não, não me enganei com A Cidade Perdida de Z.