Sexta-feira, 29 Março

A estrada perdida que liga «Lucía y el Sexo»

Estávamos a 19 de julho de 2002. A estrear nessa semana, quase um ano após a sua estreia no país vizinho de origem, tínhamos Lucía y el Sexo, a então mais recente película de Julio Medem, cineasta de culto que havia contado já com uma década de experiência na longa-metragem. Um dos três cineastas que tinham feito mostrar ao mundo que o cinema espanhol era mais que Pedro Almodóvar, embora em parte devedor desse património cultivado ao longo da década de 80. Medem formava, com Alejandro Aménabar e Álex de la Iglesia, um trio de sangue novo espanhol capaz de rivalizar com (ou até superar) o melhor que Hollywood nos oferecia – e no caso de Aménabar, esse reconhecimento e superação ficaram explícitos quando Abre los Ojos (1997) virou Vanilla Sky (2001).

O título Lúcia e o Sexo (nota curiosa: quis-se traduzir o nome da personagem principal, trocando assim a pontuação na vogal “i” pela vogal “u”) parecia de certo modo remeter para uma mera readaptação para os tempos contemporâneos de um romance “Emmanuellesco”. E de facto, para quem fosse pela pura excitação de ver corpos desnudados a interagirem entre si, e a partilhar fetiches com o espectador, não sairia desfraudado. E é engraçado pensar que 15 anos depois, a nível de exposições francas (i.e. sem pressões de um grande estúdio) da sexualidade humana, o filme ganhe ainda a qualquer “evento polémico” indigno dessa designação, como os dois capítulos da saga Cinquenta Sombras de Grey, para citar o exemplo mais popular de “filme escandaloso” dos últimos anos.

Mas o filme de Medem, para além da sua “sexyness” e diálogo franco sobre o sexo, constantemente reconhecidos em tops do género, apresenta em adição uma substância viscosa e lamacenta que foge à definição do que nós, enquanto espetadores comuns, temos de uma narrativa. Mas se a expansão da sexualidade, a língua, a banda sonora de Alberto Iglesias, e um ou outro ator “almodovarizável” remetem-nos ainda para o autor de obras-primas como Fala com Ela (também deste Verão), e a temática à superfície possa fazer pensar num dos degenerados filmes eróticos que podíamos caçar na televisão a altas horas, é mais de um certo autor norte-americano que esta obra nos lembra na sua linguagem cinematográfica, assim que nos deixamos cair no buraco.

O autor em questão é David Lynch. Acaba por ser um acaso interessante que o filme tenha surgido no mesmo ano que Mulholland Dr.. Será fácil, portanto, perceber a aparente discrição com que o filme foi recebido face ao vendaval daquela que é vista como a grande obra-prima de Lynch – que ainda hoje consumirá conversações cinematográficas à competição mais direta. Mas podemos afirmar que o tempo está a ser finalmente generoso para esta obra. (E por falar em estradas perdidas entre o sonho e a realidade, vale também a pena relembrar outro “colega de verão” da mesma formação: Femme Fatale de Brian de Palma, como integrante de uma nova sagrada trindade do “erotismo onírico” do abrir do novo século).

Há aqui uma “estrada perdida” no meio da ilha, em direção a um buraco, do qual se cai “para se começar do meio da história”. Há um erotismo onírico, onde a realidade se confunde com o sonho, ou neste caso concreto a criação artistica, onde pormenores cénicos podem dar ou não pistas, que caracterizou Lynch precisamente entre Estrada Perdida e Mulholland Dr.. Independentemente da perspetiva que o espectador adote, é certo termos aqui uma diluição de uma história numa meta história. Mas saberemos distinguir o que é a história dentro da história da “história simples”? Temos pelo menos dois escritores que podem facilmente ser os autores da meta-história sobre a qual a história supostamente “real” (mas o que é “real” num filme?) se desenrola. Ou então não passa grande parte disto de um sonho de uma das personagens…

Vale tudo portanto, sexualmente e narrativamente. Medem, tal como Lynch, escreve o argumento, prefere ser ele a criar as peças do “puzzle” desde a sua concepção, e o resultado final revela-se um dos mergulhos mais estimulantes dados no início do novo século. Lucía… di-lo melhor, quando na presença de uma das personagens que escreve, confessa: “Sempre gostei de pessoas que contam boas histórias”. Palmadinha no próprio ombro totalmente merecedora neste caso.

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