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Para além dos cordeiros: Jonathan Demme, o artista humanista

Para sempre associado ao sucesso da adaptação cinematográfica d’”O Silêncio dos Inocentes” (filme que lhe deu o único Óscar da carreira, e que goza do estatuto especial de ser um dos 3 filmes a colecionar os 5 prémios ditos “principais” da indústria: Filme, Realizador, Ator, Atriz e Argumento), a verdade é que por essa altura, o realizador norte-americano ia já na sua terceira década de carreira enquanto cineasta. 

O C7nema oferece uma trajetória pré-“Silêncio dos Inocentes” e pós-“Silêncio dos Inocentes” não necessariamente linear, em jeito de homenagem. 

Um dos protegidos de Roger Corman

A sua estreia no cinema foi na produção e argumento de um filme série B em 1971: Angels Hard As They Come, uma produção assumidamente série B, para Roger Corman e a sua companhia (New World Pictures, fundada um ano antes). Corman viria auxiliá-lo mais vezes ao longo da restante década, com produções “exploitation” como The Hot Box (1972), Caged Heat (1974, a sua primeira longa-metragem enquanto realizador) ou Fighting Mad (1976). 

Caged Heat (A Gaiola das Tormentas, 1974)

A integração na “Nova Hollywood”

Em 1977, consegue finalmente demonstrar o que consegue fazer com material de primeira liga: Handle With Care/Citizen’s Band demonstra pela primeira vez o seu fascínio com a cultura americana, com personagens à margem e um sentido de humor original – Demme pegava assim o comboio da Nova Hollywood (pegando até num dos nomes de “American Graffiti” de George Lucas, Paul Le Mat) e respondia também ele à Nova Vaga Francesa da década anterior.

É com o filme seguinte no entanto que Demme finalmente revela ao “mainstream” o seu estilo. Melvin e Howard deu a Jason Roberts e a Paul Le Mat (de novo) papéis titulares, mas as atenções viraram-se para uma quase estreante Mary Steenburgen e para o argumentista Bo Goldman, que conquistaram nesse ano dois Óscares da Academia de Hollywood. 

Melvin and Howard (1980)

Um herói do cinema e do cinema para música

Este sucesso inesperado ajudou a alimentar muitos projetos ao longo da década de 80, e a cativar atores de renome a colaborarem com Demme. O realizador era finalmente um herói independente a trabalhar com a nata da indústria (a série A, se quisermos chamar), ou a revelar ele próprio futuros novos talentos (conforme tinha acontecido com Steenburgen, houve também o salto para a fama de Christine Lahti com Swing Shift de 1984, por exemplo). 

A segunda metade da década de 80 ficaria marcada por duas comédias negras burlescas unidas pela voz original de Demme, e que por vezes se conseguem apanhar numa matiné ou num serão de televisão. Selvagem e Perigosa, o melhor dos dois exemplos, juntava Melanie Griffith, Jeff Daniels e Ray Liotta em papéis que ombreiam com o melhor que alguma vez fizeram, e é de visão obrigatória e compulsiva. Viúva… Mas Não Muito, igualmente um filme generoso para os seus atores, juntava Michelle Pfeiffer e Dean Stockwell (nomeado aqui ao Óscar), num elenco com participações de Matthew Modine, Joan Cusack e Mercedes Ruehl, num papel icónico de mulher (traída) à beira de um ataque de nervos. A sua sátira sobre a máfia causou alguma urticária saudável ao italo-americano Martin Scorsese, que lhe terá dito que teve uma lata especial em usar a canção “Mambo Italiano” de Rosemary Clooney, uma vez que só italianos poderiam usar esse tema e escapar com isso. 

Something Wild (Selvagem e Perigosa, 1986)

De facto, o uso de música nos seus filmes tornou-se tão importante como o “casting” dos atores. O cineasta nunca conseguiu esconder o seu fascínio pela música dada a maneira sempre vital como que a inseria nos seus filmes, cantada por vezes pelos seus atores ou por figurações especiais, e viria a dar um dos testamentos mais marcantes sobre o formato “documentário musical” ao acompanhar a digressão da banda Talking Heads em Stop Making Sense. Posteriormente acompanharia Neil Young por três vezes: Neil Young: Heart of Gold (2006), Neil Young Trunk Show (2009) e Neil Young Journeys (2011). São dele também os vídeos de I Got You Babe (para UB40 com Chrissie Hynde) ou The Perfect Kiss (para New Order). Ao ter Bruce Springsteen a compor o tema Streets of Philadelphia de 1993, o realizador aproveita também para realizar o videoclip do tema que seria um dos mais tocados desse ano. Com Springsteen contam-se duas outras colaborações: If I Should Fall Behind (1992) e Murder Incorporated (1995).

Uma América multicolor

Desde o início (a fase “exploitation” da sua carreira) que Demme nunca se inibiu de apresentar minorias no grande ecrã com as suas particularidades. Esta tornou-se aliás uma das suas marcas pessoais. Muitas vezes, esta “queerness” era posta ao serviço de uma sátira (como nos filmes dos anos 80 acima mencionados). Mas noutros casos, o drama chamou mais alto. 

Philadelphia (Filadélfia, 1993)

Em Filadélfia, ainda no pico da epidemia da doença causada pelo VIH (1992), Demme traz para o “mainstream” uma comunidade homossexual estigmatizada que pedia justiça por esta discriminação – não era um caso isolado, é certo, e num exercício revisionista, acabaria por envelhecer praticamente tão mal como tantos outros filmes que colocaram a SIDA como personagem principal – poderíamos argumentar que há até aqui uma réstia de “exploitation” mas com a diferença essencial de ser um pacote de alta qualidade. Mas foi um dos filmes mais importantes que se podiam fazer naquele tempo, nem que fosse pela maneira como expandiu o debate público sobre o tema, sobretudo ao colocar um dos atores queridos de Hollywood (Tom Hanks, justo vencedor do Óscar) na pele de “um deles“, e um dos músicos mais aclamados do homem heterossexual branco (Bruce Springsteen, outro vencedor do Óscar) a cantar uma balada sobre “eles”. 

A sua luta pela representatividade negra no cinema foi outra peça-chave da sua filmografia. Até em Filadélfia, a “voz do espectador comum”, num olhar apreensivo e ligeiramente homofóbico tinha o corpo de Denzel Washington. Em 1998, realiza a adaptação de Beloved, no qual uma escrava (interpretada por Oprah Winfrey) é visitada pelo espírito da sua filha falecida. Nos dois “remakes” consecutivos que realizou já neste novo século (A Verdade Sobre Charlie de 2002 e O Candidato da Verdade de 2004), Demme trocou as voltas ao público mais conservador ao substituir Audrey Hepburn e Frank Sinatra por Thandie Newton e Denzel Washington, respetivamente. 

The Manchurian Candidate (O Candidato da Verdade, 2004)

O Casamento de Rachel (2008) representa de certo modo uma síntese magnífica de toda a sua obra. Uma dramédia familiar, oscilando de forma madura entre a fase de sátira negra que ocupou muita da primeira metade da sua carreira com uma componente mais “séria” que teve em O Silêncio dos Inocentes, o momento de viragem, e com a multiculturalidade sempre presente na sua obra aqui novamente em primeiro plano (aqui, um casamento inter-racial com um tema Hindu!), o filme prima ainda por ter a música (de casamento) bem proeminente, ou não fosse Tunde Adebimpe, o noivo do casal, o vocalista da banda TV on the Radio… E claro, são aqui novamente óbvias as influências da Nova Hollywood que acolheu Demme (Cassavetes, Altman… realizadores tão enamorados com os seus intérpretes como ele viria a ser), tanto ou mais do que do movimento “Dogma 95” ao qual foi associado automaticamente aquando da sua estreia.

Para além de realizador e produtor, Demme foi também um mentor, tendo sido vital para impulsionar a carreira de talentos à sua volta, como foi o caso de Jodie Foster, que pouco tempo depois da estreia d’O Silêncio dos Inocentes, faria a sua estreia enquanto realizadora com o filme Mentes Que Brilham, e sobre a qual incidiu também uma menção no seu discurso de aceitação do Óscar de Melhor Realizador em 1992. Ainda ontem, a autora Susan Orlean revelou [1] que Demme foi uma figura central na “meta-adaptação” de The Orchid Thief em Adaptation. 

Jonathan Demme durante a rodagem de Rachel Getting Married (O Casamento de Rachel, 2008)

Trabalho na televisão

Ao longo de cinco décadas, Demme passou também pelo pequeno ecrã, realizando três episódios de Saturday Night Live (entre 1980 e 1986), o episódio Who Am I This Time?, de 1982, protagonizado por Susan Sarandon e Christopher Walken para a antologia American Playhouse, um par de episódios para a série de curta duração (2 temporadas, entre 2011 e 2013) Enlightened com Laura Dern escrita por Mike Mills, outro par de episódios de The Killing (uma rara ocasião onde voltou ao género de Silêncio dos Inocentes), e numa nota de “timing” cruel, o seu último trabalho, feito para a série Shots Fired, foi para o ar (nos Estados Unidos) no mesmo dia que a sua morte.