Sexta-feira, 19 Abril

Jane Campion – Retrato de uma jovem realizadora


Jane Campion © Patrick Swirc / modds agency

Para o mundo, ficará conhecida como a primeira (e até hoje, única) mulher a conquistar uma Palma de Ouro em Cannes. Mas há uma história antes do sucesso internacional de O Piano (que lhe valeu também uma das raras nomeações ao Oscar de Realização para uma mulher) – uma história à qual o Cortex – Festival de Curtas-Metragens de Sintra quis prestar atenção, ao exibir quarto das suas curtas-metragens realizadas ainda quando estava na escola.

Quisemos também prestar a devida homenagem com uma breve retrospetiva escrita a este percurso “escolar”, que por sua vez fez escola, e ajudou a pôr a Nova Zelândia no mapa cinematográfico, muito antes desta ser reconhecida no ecrã como a terra dos anões, elfos e outros seres afins.

Uma artista antropóloga

Nascida a 30 de abril de 1954, filha de um diretor de um teatro e de uma atriz, Jane Campion foi criada em Wellington, na Nova Zelândia, juntamente com a sua irmã mais velha e o seu irmão mais novo.

Campion começou por tirar um curso em Antropologia Estrutural, até viajar para a Europa e se apaixonar pelas artes. Terminou o seu diploma em Sidney (Austrália) tendo como ramos a pintura e a escultura, mas no último ano começou a descobrir a sua verdadeira vocação pela sétima arte, e começou aí a aventurar-se por curtas-metragens em Super 8.

A curta Tissues levou-a à Australian Film Television and Radio School, escola onde desenvolveria mais projetos: Peel (1982), Passionless Moments (1983), A Girl’s Own Story (1984) e After Hours (1984). Serão precisamente estas as curtas exibidas no âmbito do Cortex 2017. Talvez ajudada com a sua formação ampla em artes e humanidades, Campion revela desde cedo um talento em dar voz a personagens que lutam para ser ouvidas no mundo (na sua grande maioria mulheres), a sexualidades presas, “proibidas” filmadas sem grandes julgamentos.

Peel (1982)

É um verão quente na Austrália. Uma família viaja de carro. Até o filho do casal começar a deitar cascas de laranja janela fora, e ser repreendido pelo pai…

Nos seus 9 minutos (vencedores da sua primeira Palma de Ouro, quando a curta foi exibida em 1986 no Festival de Cannes), Campion nunca dá essa sensação de tranquilidade bucólica de um fim-de-semana em família. Começamos logo a ouvir o que parece ser o bater insistente de uma bola (é afinal uma laranja, que funcionará, tal como a sinopse indica, como um motor mais potente que o carro que leva esta família), acompanhado do pré-título de Peel, An Exercise in Discipline (traduzido à letra por Um Exercício em Disciplina). Segue-se, ainda com o mesmo barulho inquietante, uma imagem com o desenho do “triângulo familiar” em questão. Um triângulo formado por atos e contra-atos de uma teimosia rebelde. Um triângulo que narrativamente lê-se mais como um círculo, dado que a história eventualmente se fecha no mesmo ato com que desabrocha, desta vez assumindo a criança o papel de “polícia”. A disciplina, tal como o amor, tem um carácter bidireccional, reativo. Que Campion brinque também aqui em tão curto espaço de tempo com a fronteira entre o real e o ficcionado surge como um pequeno bónus. “Uma história real/ uma família real” é outro dos subtítulos presentes no início da curta, e de facto, a família de Peel é mesmo uma família “real”, recrutada pela realizadora.

Passionless Moments (1983)

Passionless Moments expande a veia experimental já a espreitar em Peel, só que ao invés de se focar numa só unidade, Campion foca-se aqui numa sequência de vinhetas (e aqui são 10 mini-“histórias de bairro” em pouco mais de 10 minutos, mais concretamente!) sob um olhar irónico.

A intenção de repetir o realismo de Peel, pese uma estética mais “artificial”, mantém-se. Numa entrevista à publicação francesa Positif com Michael Ciment em 1989, Campion enfatiza precisamente esse realismo que procura nas suas histórias: “O Gerard (Lee) [co-argumentista, e corealizador] e eu queríamos mostrar pessoas comuns e doces que raramente vemos no ecrã e que têm mais charme que actores mais conhecidos“.

Foram precisos 5 dias para filmar esta curta; duas histórias por dia. O estilo novamente documental dos procedimentos reflecte-se logo também no título completo revelado nos primeiros segundos: “Passionless Moments recorded in Sydney, Australia, Sunday October 2nd“, como se de uma experiência antropológica, etnográfica, se tratasse.

A Girl’s Own Story (1984)

A temática do isolamento feminino e do desejo reprimido presente na maior parte das suas longas-metragens é aqui introduzida, numa faceta ainda mais extremista do que as que testemunhámos em filmes como Um Anjo à Minha Mesa, O Piano, Retrato de uma Senhora ou In the Cut.

A desejabilidade do inacessível traduz-se neste caso numa relação incestuosa entre dois irmãos. Estamos em plena era de “Beatlemania”. Entretanto, outras duas raparigas, fãs dos Beatles, exploram a sua sexualidade despertante, sendo que, numa das cenas mais marcantes, uma delas usa uma máscara de um dos elementos da banda, enquanto beija a sua amiga (soubemos anos mais tarde, que aos 14 anos, a Nicole Kidman de “Retrato de uma Senhora“, rejeitou um destes papéis por se sentir desconfortável com o que lhe era pedido…).

Não há uma narrativa organizada, há fragmentos da vivência destas três adolescentes, e uma necessidade constante de ter “aquecedores”, como que para reduzir o isolamento emocional destas personagens. Não será de todo coincidência que o tema cantado por estas três adolescentes no final desta curta se intitule “I Feel the Cold” (“Eu sinto o frio”) numa sala cheia… de aquecedores. Campion aperfeiçoaria estas “metáforas literais” anos mais tarde com a personagem de Ada do Piano (uma mulher literalmente sem voz no mundo que a rodeia), mas A Girl’s Own Story contém já aqui a mesma franqueza que a obra posterior da realizadora.

After Hours (1984)

Face às três curtas que lhe precederam, After Hours é definitivamente mais polido, mais “profissional” (i.e. indo mais ao encontro de um modelo canónico de perfeição artistica), notando-se um crescimento óbvio neste seus anos na Escola de Cinema.

Campion parte desta feita para a temática do assédio sexual. Mas não se trata de filmar uma acusação em jeito de “filme de tribunal”; conforme nos irá habituar muitas vezes no formato longa-metragem, à realizadora interessa mais explorar a fronteira, por vezes difícil de limitar, entre o factual e o fantasiado para a protagonista feminina. Se há um ponto bastante positivo no filme, e apesar de termos claramente aqui uma perspetiva clara da vítima, é questionar a própria veracidade do assédio em questão. Apanhamos a incoerência do “retrato de família” no depoimento desta jovem, e imaginamos até que, em última análise, no seu pensamento, pudesse ter servido para tornar a sua história mais dramática no tribunal. Ou que possa simplesmente ter imaginado essa parte, a partir dos relatos do alegado abusador, e nem sequer saber que imaginou. 

No entanto, a própria Campion não lembra com bons olhos esta experiência mais panfletária, comissionada pela Women Production United, alertando para o aspecto de encomenda (profissional, mais uma vez, sem dúvida) aberta ao feminismo do próprio. Na entrevista de 1986 a Michael Ciment (aquando da projeção das suas três curtas anteriores em Cannes) afirmou o seguinte: “Não me senti confortável, porque não gosto de filmes que digam como as pessoas se devam ou não comportar. Acho que o mundo é mais complicado que isso. Prefiro observar pessoas, estudar o seu comportamento sem as culpar. Preferia ter posto este filme num armário, mas acabou por viajar pelo mundo! Gosto de fazer filmes que gostaria de ver como espectadora e não é o caso com ‘After Hours’, mas foi importante para mim fazê-lo.

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