Sexta-feira, 19 Abril

«Barry Lyndon»: um quadro pintado por Kubrick

O mais belo filme do mundo” (L’Aurore), “Uma obra-prima. O melhor filme de Stanley Kubrick” (Het Parool), “O filme mais perfeito jamais feito” (Tagblatt-Zurich). Eis alguns excertos das críticas que se escreveram aquando a estreia, na distante data de 1975, de Barry Lyndon. Indubitavelmente um dos grandes momentos, não só da carreira do seu cineasta-autor, Stanley Kubrick, como da história do cinema, é agora reposto no Cinema Ideal em cópia digital, a partir desta quinta-feira até 17 de agosto.

Nunca um filme teve tantos planos a parecerem-se com quadros da época (nomeadamente de Hogarth, Watteau, Reynolds e Gainsborough), onde cor, guarda-roupa, caracterização e cenários são compostos por uma elegância minuciosa de detalhe e elevado sentido estético. Muita tinta correu já sobre o filme ter sido filmado à luz das velas, com lentes desenvolvidas pela NASA (a fotografia de John Alcott é magnânima); a beleza visual; o realizador ter requisitado à atriz Marisa Berenson que não apanhasse Sol por vários meses, afim de atingir a coloração necessária; o ter sido rodado em locais naturais, não se construindo quaisquer cenários; ou mesmo a escolha, quase fetichista, da banda sonora, toda ela músicas do período clássico (Barry Lyndon faz por Händel aquilo que 2001: Odisseia no Espaço (1969) fez por Strauss). E, no entanto, apesar de todas as estórias que comprovam o seu talento perfecionista inquestionável, Barry Lyndon parece vir de outro mundo. De uma altura em que ritmo (calmo, como um sonho que se respira) prevalecia à montagem, a encenação ao argumento, a composição à exposição, enfim, o cinema enquanto forma de arte suprema contemplativa, que não renega as suas raízes em outras. Dito em poucas palavras, Barry Lyndon é o 2001 do século XVIII.

E, no entanto, não deixa de ser o filme mais subestimado e incompreendido do cineasta americano. Aquela que é, talvez, a obra-prima de Kubrick (definida, entre outros, por Scorsese que o usou como forte referência ao seu A Idade da Inocência (1993)) foi denegrida desde o começo pela pobreza do seu argumento, o ritmo e pela apatia das suas personagens, embora o esplendor visual tenha sido sempre consensual e admirado.

Nada de mais errado. Kubrick, em vários momentos da sua obra, interessou-se pela psicologia humana, expondo personagens que reprimiam os seus sentimentos face a pressões sociais, fossem elas de origem política (Laranja Mecânica (1971)), militar (Horizontes de Glória (1957)), sexual (Lolita (1962)) ou matrimonial (De Olhos Bem Fechados (1999)), libertando-as numa fúria irreprimível em momentos fulcrais da narrativa com consequências para todas as personagens (será necessário recordar o suicídio de Vincent d’Onofrio em Full Metal Jacket – Nascido Para Matar (1987)?). Daí que, por ser retratado um ambiente aristocrático onde as impressões são tudo e um jogo de máscaras é necessário existir para se tornar alguém, Barry Lyndon seja o seu mais contido, o que não o impede de conter uma das cenas mais violentas de todo o cinema Kubrickiano, aquela em que espanca o filho adotivo após este humilhar Barry diante de pessoas de elevado estatuto, ao interromper um recital de música.  

Mas, de que se trata, afinal? Do longo trajeto envolvendo a ascensão e queda do irlandês Raymond Barry (Ryan O’Neal) no século XVIII, disposto a tudo para sair do estatuto de miserável a que foi condenado a viver, após a vitória que obteve face a um covarde cavalheiro inglês que lhe cortejava a prima, num duelo. Trajeto esse que envolve o servir o exército inglês na Guerra dos Sete Anos, o tornar-se cúmplice de um jogador desonesto e o seduzir a esposa de um Lord. Um homem cruel? Veja-se quando Barry mergulha no alcoolismo após a morte do seu filho numa queda de cavalo (talvez a mais notória referência cinematográfica desta obra, obviamente, a E Tudo o Vento Levou) ou contemple-se a loucura gradual de Lady Lyndon quando se apercebe de que todo o seu matrimónio esteve ausente de amor.

Se Barry Lyndon mantém o seu poder original, é por ser também um filme de elevadas ambiguidades, não de filosofia cósmica, mas sim de personagens, onde o espetador projeta nelas as emoções e pensamentos que estas não expressam, senão pelo rosto e pequenos gestos. Como disse, certa vez, Kubrick em entrevista “Penso que é essencial, se um homem for bom, que este saiba também em que é mau e o demonstre, ou se for forte, que decida quais são os momentos na história em que é fraco e o mostre”[1].

E depois, há o final, talvez o mais memorável memento mori do cinema, onde um cartão-epílogo anuncia que todas as personagens relatadas “boas ou más, atraentes ou feias, ricas ou pobres, são todas iguais agora”. É a futilidade da existência humana, o eterno dilema do sentido da vida respondido em duas meras palavras, “THE END”.


[1] Kubrick, Stanley: “Notes on Film.” The Observer, 4 de dezembro de 1960

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