Sexta-feira, 19 Abril

Cinema de autor “pornográfico”: Uma viagem ao Portugal pré-internet

Numa altura em ainda temos em cartaz o sexualmente explícito Love [ler crítica], de Gaspar Noé, o C7nema convida-vos a uma viagem no tempo a um Portugal diferente e de costumes ainda mais brandos. Quando a internet, já “inventada”, se encontrava ainda restrita a um conjunto de geeks em laboratórios e outros recantos afins – o que tornava todo o nosso conhecimento ainda mais dependente do que víamos num televisor. E é precisamente sobre este meio de comunicação em massa que a nossa história incide, com os casos emblemáticos das transmissões de filmes como Pato com Laranja, A Lei do Desejo ou O Império dos Sentidos.

Parece lógico, numa época onde a informação que as audiências recebiam se encontrava muito circunscrita à “caixinha mágica”, o impacto de um filme que pudesse mostrar mais do que a sociedade ditava fosse mais amplo do que é em 2016 – ao ponto, até, da transmissão do filme ser cortada a meio (simplesmente por mostrar nudez feminina). Estamos em 1983, Portugal ainda está fora da Comunidade Económica Europeia (C.E.E.), vivendo a sua primeira década de democracia, e vem a demonstrar a sua fraqueza num dos apagões mais insólitos da nossa História.

Ainda hoje haverá pessoas a perguntar como acabará a comédia italiana de 1975, Pato com Laranja, de Luciano Salce, depois do corte do filme a meio, naquele que é um forte candidato a maior ato de censura no pós-25 de abril. Toda esta polémica viria a culminar com a demissão e um pedido de desculpas formal do então diretor de programas João Palma Ferreira. O deputado do PSD Reinaldo Gomes classificava então o filme, cujo maior “ultraje” será mostrar o traseiro de uma das suas atrizes, como “pornográfico”.

Viriam a passar-se 8 anos para a televisão pública voltar à polémica pelo mesmo tipo de conteúdo, ainda sem concorrência das estações privadas (embora se falasse já dessa iminência, nesta altura; estávamos afinal a ano e meio do nascimento da SIC), e ainda a meia década do fenómeno de televisão por cabo. Estávamos então em 1991, quando a novela “Tieta do Agreste” fazia as delícias do público ao apresentar no genérico o que Vitti fez no mesmo horário nobre 8 anos antes. No espaço de três dias, dois tiros, dois filmes considerados consensualmente como “filmes de qualidade” e com classificação para maiores de 18 anos: A Lei do Desejo, de Pedro Almodóvar, a um sábado, e O Império dos Sentidos, de Nagisa Oshima, a uma terça.

No caso de Almodóvar, apesar de também conotado como “pornográfico e obsceno” por pelo menos um dos queixosos à Alta Autoridade para a Comunicação Social (A.A.C.S.), foi tido como menos grave. O seu conteúdo era, em boa verdade, mais soft (apesar de se debruçar sobre uma temática homossexual, o que em 1991 era chocante q.b.), mas foi também salientada a preocupação que a RTP teve, neste caso, no horário de exibição escolhido – “pouco depois das 24 horas”.

Concentremo-nos então na coprodução francesa de Oshima, de longe “a maior afronta” (embora tenham surgido queixas em ambas as frentes): sexo explícito, novas utilizações para um ovo, e uma castração fizeram tema de conversa de café durante meses. Passou às 22 horas e 15 minutos de uma terça-feira de 1991, dia 19 de fevereiro, na RTP2 e a A.A.C.S., apesar de se pronunciar a favor da estação, fez questão de realçar que o filme devia ter sido passado mais ao final da noite. Se desta vez não houve cortes na emissão, o feedback não foi mais menosprezável no seu impacto na sociedade civil, e os telefonemas para a RTP repetiram-se.

O Jornal escreveria nesse mês: “O sexo explícito a irromper num filme não pornográfico e a nossa televisão a ultrapassar as melhores expectativas”. “A RTP não é uma sala de cinema onde só vai quem quer” foi outra das reações, enquanto se mencionava que o filme “consiste apenas na repetição quase ininterrupta do ato sexual, na prática de aberrações abomináveis e na obsessão de um revoltante sadismo”. Mas a reação mais icónica chegou a posteriori, vinda do arcebispo de Braga, D. Eurico Nogueira, ao semanário Expresso: “Aprendi mais em meia hora a ver ‘O Império dos Sentidos’ do que em 67 anos de vida”.

A A.A.C.C. destacou o carácter perturbante da película (“é um filme incómodo e gerador de profunda tensão”), mas veio também em defesa da sua exibição, admitindo que “O filme ‘Império dos Sentidos’ não é, puramente, um filme pornográfico, ou obsceno”.

Voltemos então ao presente. Nos últimos anos, a ERC chegou a receber queixas sobre a transmissão do também explícito O Desconhecido do Lago [ler crítica], de Alain Guiraudie (com direito a ereções e ejaculações explícitas et al), que teve direito a duas transmissões na televisão pública: a primeira às 02h57 do dia 24 de julho de 2014 na RTP1; a segunda às 01h50 do dia 6 de dezembro de 2014 na RTP2. Ambas as transmissões cumpriram o Artigo 27º da Lei da Televisão que nos diz que “A emissão televisiva de quaisquer outros programas susceptíveis de influírem de modo negativo na formação da personalidade de crianças e adolescentes deve ser acompanhada da difusão permanente de um identificativo visual apropriado e só pode ter lugar entre as 22 horas e 30 minutos e as 6 horas.”.

Mais ainda: A RTP apresentou o dístico “16” para o Desconhecido do Lago, alinhado com a classificação M/16 (para maiores de 16 anos) atribuída pela Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC). Uma classificação algo questionável face ao conteúdo aqui presente, mas que “iliba” a estação pública de qualquer ilegalidade ou irregularidade que as queixas à ERC poderiam pressupor, no que toca à transmissão de “pornografia” em sinal aberto – o que é estritamente proibido, acrescente-se. A diferença face a 1991? A perda de qualquer estatuto de “grande acontecimento” relacionada com estas transmissões. Esta falta de relevância pode-se também explicar pela óbvia mudança de paradigma na nossa sociedade, primeiro com a abertura a novos canais privados generalistas, depois com o nascimento da televisão por cabo, e no virar do século, com a disseminação da internet progressivamente pelos vários ecrãs nos nossos lares. Hoje em dia, em qualquer ecrã, qualquer utilizador pode ter acesso a pornografia, em muitos casos não tendo este cumprido 18 anos de idade…

Se fizermos uma sondagem à população nacional sobre se conhece O Desconhecido do Lago, iríamos encontrar uma forte maioria que nunca teria ouvido falar em tal obra, quanto mais associá-lo a qualquer polémica mediática. Agora experimentem perguntar aos vossos pais e avós sobre O Império dos Sentidos

(Este artigo foi parcialmente retirado de um trabalho homónimo realizado para a Unidade Curricular de Politicas Europeias para os Media, inserida no Mestrado de Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação do ISCTE-IUL)

Fontes importantes:

“O caso de O Império dos Sentidos, o filme que ensinou ao arcebispo de Braga mais do que 67 anos de vida”, Público: http://www.publico.pt/culturaipsilon/jornal/o-caso-de-o-imperio-dos-sentidos-o-filme-que-ensinou-ao-arcebispo-de-braga-mais-do-que-67-anos-de-vida-25900180

Debates Parlamentares – 3ª República, Série II, III Legislatura, Sessão Legislativa 01, Número 093, 1984-03- 02, Páginas 2366 e 2367;

Deliberação sobre a exibição do filme “O Império dos Sentidos” no canal 2 da RTP (aprovada na reunião plenária de 24 de abril 1991), Alta Autoridade para a Comunicação Social;

Deliberação sobre a exibição do filme “A Lei do Desejo” no canal 1 da RTP (aprovada na reunião plenária de 15 de maio de 1991), Alta Autoridade para a Comunicação Social;

Lei da Televisão n.º8/2011, de 11 de Abril;

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