Sábado, 20 Abril

Paul Verhoeven: os reflexos da sua carreira pré-Hollywood

Conhecido mais pela sua obra em espaço norte-americano, a verdade é que a carreira de Verhoeven na sua terra natal consegue ser igualmente fascinante. Por um lado, não deixa de ser notável um realizador que terá batido o recorde de uso de espelhos no cinema ter uma obra que se abre igualmente em reflexos, em “obras-espelho“, entre os filmes holandeses e os “hollywoodianos“.

Podemos, agora que estamos dispostos a promover o estatuto do cineasta para “autor“, venerado pelo Cahiers do Cinema, argumentar que há aqui umas quantas marcas replicadas aos pares. “Spetters” e “Showgirls” partilham os mesmos propósitos de sátira à ascensão social, enquanto que “O Quarto Homem” constitui o protótipo de “Instinto Fatal“. Já “O Soldado da Rainha” e “Livro Negro” mostram um “yin” e “yang” da 2ª Guerra Mundial, o segundo claramente mais retorcido (e melhor na opinião deste escritor, como consequência). Já “Keetje Tippel” e “Business is Business” inserem a temática da prostituição como objeto de crítica social – a ter que definir uma marca em definitivo do cineasta, é mesmo este tom satírico-sério, e o não ter medo de morder, de cuspir e ejetar outros fluidos humanos (ou não) de modo a cumprir essa sua crítica confiante e sem remorsos aparentes de ser mal interpretada.

Decidi então passar uma semana na Cinemateca, tentando analisar o que de muito bom Verhoeven fez antes de se pôr de malas e bagagens para Hollywood.

BUSINESS IS BUSINESS (1971)

Originalmente pensado para ser um filme pornográfico – um género que, lembremos, então “penetrava” o “mainstream” num período de clara revolução sexual, Verhoeven decidiu transformar esta adaptação de um romance de Albert Mol (presenteado com uma curta aparição aqui), numa obra de contornos bastante grotescos e “camp“.

No fundo, podemos ver este seu primeiro filme sobre as aventuras e desventuras de duas amigas prostitutas de Amesterdão como uma maqueta castiça sobre o que viria a surgir posteriormente para o autor, quer ainda na Holanda, quer depois na transição para Hollywood (“Showgirls“, etc.).

A saber: a) um cinema cáustico na sua sátira, de olhar sempre cínico sobre a Humanidade feito para um público com o mínimo de poder de encaixe; b) a crítica a uma sociedade capitalista de espetáculo; e c) a introdução já aqui de um jogo também de identidades e espelhos (entre estas duas prostitutas nomeadamente; a “profissional” e a “amadora“), acrescente-se, embora de forma menos “perfeita” do que testemunharemos múltiplas vezes ao longo da sua carreira.

Poderíamos, com o olhar virgem de estarmos a ver o primeiro filme do autor, mas não descartando o contexto histórico, pensar que estamos aqui perante uma resposta holandesa a John Waters – que aliás, se estreava no cinema apenas dois anos antes com a sua musa Divine. Ou então numa ligação perdida entre o Fellini mais surrealista dos últimos anos e o Almodóvar dos seus primeiros anos. De qualquer das maneiras, fica o ponto claro: temos aqui uma nova voz divertida e mordaz.

Mas ainda assim, “Business is Business“, no seu “camp” pontuado por uma banda sonora genericamente 70s/pornográfica, nas suas lágrimas exageradas no ecrã e gargalhadas sentidas pela plateia, marca apenas um começo imperfeito de uma obra a roçar a perfeição em termos conceptuais (em que muito provavelmente, só “O Homem Transparente” destoará na pintura, como o próprio Verhoeven reconheceu recentemente numa entrevista ao jornal “Público”) que merece toda ela a reavaliação que o IndieLisboa decidiu dedicar este ano.

DELÍCIAS TURCAS (1973)

Ao segundo filme, Verhoeven amplia o seu raio de ação. “Delícias Turcas” é oficialmente o filme que o põe no mapa internacional – um gigantesco sucesso local que atravessou o Atlântico e foi posteriormente pontuado com uma surpreendente nomeação ao Óscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira (i.e. não-inglesa) É também a primeira de várias colaborações com o então desconhecido Rutger Hauer, que, uma década depois, também aproveitará a boleia de Verhoeven (à imagem do que acontecerá também com o diretor de fotografia Jan de Bont) para se projetar à escala mundial, com o lançamento de filmes como “Blade Runner” (1982) ou “Ladyhawke” (1985).

Engane-se no entanto quem espera um filme mais “protocolar” ou “académico“. Quando falo que o autor “amplifica o seu raio de ação“, falo também do conteúdo aqui presente – altamente impróprio para se ver em família. Da representação da sexualidade e nudez desbragadas dos protagonistas a momentos de humor “non sense” do foro privado (terão os irmãos Farrelly arranjado aqui a ideia da cena do fecho para o filme ” Doidos por Mary“?), passando pela maneira ambígua como o autor mostra o casal de protagonistas apaixonado, e culminando com o tratamento do desenlace “dramático“, nada aqui grita facilitismo.

Quanto muito, o único criticismo válido será mesmo a martelada de excessos – criticismo que continuará ao longo da sua obra… Mas em boa hora os executa. ” Turkish Delight” (título internacional) funciona como uma unidade viva, humana e imprevisível, mesmo com o prenúncio todo bem pincelado – a título de exemplo mais icónico, o uso abundante de larvas. Erotismo, desfiguração do corpo/perda de identidade e morte serão temas recorrentes na sua obra, e têm aqui uma primeira presença marcante.

KEETJE TIPPEL (1975)

Após o sucesso de Delícias Turcas, Verhoeven tinha finalmente o foco sobre si, e decidiu filmar, como projeto imediatamente posterior, uma versão muito sua da história de Cinderela, pegando no mesmo “par romântico“, mas subvertendo as expectativas que pudéssemos ter em relação a uma repetição da fórmula.

Inspirado numa figura verídica, a história de Keetje Tippel é uma história que o autor contará mais vezes ao longo da sua carreira, no fundo: a ascensão de uma loira, que de pobre a pobre-rica, descobre que o dinheiro pode corromper as pessoas. Aqui, a grande diferença face a obras posteriores, para além do cenário pouco visto (Amsterdão em final do séc. XIX) é que Verhoeven permite ao espectador sonhar mais além quando as luzes da sala se acendem. Se a sua habitual “mão castigadora” está mais ausente nos minutos finais, na restante hora e meia há espaço mais que suficiente para desenvolver a sua tese sobre a corrupção humana, com cuspo, saliva, sangue, e tostões. Por falar em tostões, de salientar o bom trabalho de reconstituição de época, aproveitando bem o orçamento que à data foi o mais alto dado a uma obra holandesa…

O autor volta assim a emparelhar Rutger Hauer e Monique van de Ven, invertendo desta feita os papéis – i.e. secundarizando Hauer e dando destaque total à “loira” Monique, que encarna aqui de corpo e alma o papel titular, e ajuda assim a tornar o próprio filme numa experiência transformativa.

O SOLDADO DA RAINHA (1977)

Pela primeira vez na Cinemateca-Portuguesa, o folheto que peguei a falar sobre o filme pouco de bom tinha a dizer sobre este ou o (não-)autor da obra. Que isto tenha surgido a propósito deste “O Soldado da Rainha“, quiçá o seu filme mais consensual do seu período holandês, eis a ironia máxima.

A esta altura do campeonato – algures durante os desenvolvimentos cínicos de Delícias Turcas, percebemos que Verhoeven não se vai contentar em apenas chocar, mostrar genitais, fluxos corporais e seguir em frente. Este é aliás o seu segundo filme de época “sério ” (após o imediatamente anterior “Keetje Tippel”) e o filme que pôs Steven Spielberg de olhos no holandês ” terrible“. A história, uma adaptação da autobiografia do soldado Erik Lanshof, do seu ativismo estudantil a  “o soldado da rainha” do titulo, é uma das menos conhecidas das que vimos sobre a Segunda Grande Guerra e recai aí o seu primeiro ponto a favor.

De resto, e pesem as duas horas e meia de filme, é tudo muito bem encenado. Sendo o filme tão expansivo, há espaço para soltar mesmo assim o seu veneno de marca, a sua análise crítica à condição humana em momentos de maior necessidade. Claro que este veneno, desta vez, não sai propriamente fora do sítio, dado o contexto temático da película, mas há ainda assim subversões curiosas, como a cena do baile entre dois homens, de lados opostos, um dos claros momentos para a posterioridade.

No final, questionamos se Verhoeven em modo menos sério e consensual não será efetivamente mais fascinante de observar, mas que não haja dúvidas que este seu lado mais “amigável” mostra bem a sua robustez. De qualquer das maneiras, o Verhoeven deliciosamente indelicado surgiria já de seguida num dos seus filmes mais atacados …

SPETTERS: VIVER SEM AMANHÃ (1980)

Muito antes de Forrest Gump nos dizer que a vida era como uma caixa de chocolates, surgia Verhoeven no seu filme mais controverso à data a dizer-nos que a vida era como os croquetes que comemos nas roulottes – se soubéssemos o que tinham, não quereríamos mais comer.

Spetters” foi o filme que levou os críticos a chamar Verhoeven as palavras mais cruéis, de homofóbico e misógino a anti-religioso. O ódio aqui foi também germinado por aquela que se começa a revelar como outra marca autoral: a ambiguidade moral de Verhoeven face às personagens que mostra, sem necessidade de criar grande empatia entre estas e o espectador, num lugar privilegiado de “voyeur” perante a destruição da humanidade.

Três amigos lutam por uma bela rapariga loira que sonha por sua vez em sair da roulotte que partilha com o irmão para voos mais altos. O primeiro é a grande esperança amadora de “motocross” Rien; o segundo, Hans, é mais amador na mesma modalidade, remetendo o seu amadorismo ao seu equipamento deficiente (embora descubramos que num outro departamento, o seu equipamento triunfe sobre os restantes); o terceiro é o mecânico Eef, filho de uma família profundamente religiosa.  Nem a loira nem o trio de jovens que a tenta engatar/se deixa engatar vai merecendo muita simpatia salvo porventura a maior das vítimas da sua teia, mas isso não signifique que esta sátira cínica não cumpra os seus objetivos essenciais.

Faz sentido trazer um seu outro filme posterior à conversa, igualmente criticado, sob adjetivos e argumentos semelhantes, e recentemente objeto de reavaliação, quando visto também como sátira ácida ao capitalismo e à escada social. Se a obra de Verhoeven é feita de espelhos, então torna-se rapidamente óbvio que “Spetters” é a base de “Showgirls” com “motocross” em vez de “pole dancing“, com violação masculina em vez de feminina, com a mesma mão invisível e castigadora a garantir dos dois lados, que os sonhos de ascensão social e de fama, são fantasias em primeiro lugar. Que há sempre pessoas a quererem pisar em cima de outras, as de baixa classe e as que estão no topo da cadeia (aqui convenientemente interpretadas pelos atores Rutger Hauer e Jeroen Krabeé, num reverso moral aos papéis interpretados no filme “O Soldado da Rainha“). Esta comparação abrange até o título – um mero substantivo descrevendo um grupo social de amadores e amadoras bem à margem do topo da escada que pretendem alcançar um dia.

Se, por exemplo, a cena da violação masculina aqui é chocante q.b., o que chocará ainda mais é como esta gera um processo de “coming out” por parte da vítima, e até de um potencial relacionamento com um dos violadores. Verhoeven não mostra ter qualquer receio de ser encostado à parede por qualquer grupo social que satirize aqui e pelo politicamente incorreto das situações “hardcore” que gera (e parece tê-los praticamente todos cobertos nesta película); o espelho que aponta só é bonito até nos aproximarmos melhor, mas compactua perfeitamente com a sua visão cínica da realidade. “Porkys” definitivamente isto não é; assim como, diga-se de passagem, “Showgirls” não mereceu ser visto como um novo “Striptease“.

O QUARTO HOMEM (1983)

Verhoeven não se limitou a filmar espelhos para mostrar duplicidades; a sua obra posterior à chegada a Hollywood revelou-nos duplos face à sua obra feita na terra natal.

Se “Spetters (Viver Sem Amanhã)” e “Showgirls” fazem um par perfeito de filmes proletários, a trama de “Instinto Fatal” e a de “O Quarto Homem” formam outro par, mais na onda de “thrillers” hitchcockianos.

Em “O Quarto Homem“, a intriga gira em torno de um escritor homossexual (/queer?) inicialmente envolvido por uma admiradora, que começa aos poucos a acreditar que esta matou os seus três maridos anteriores, e que este possa vir a ser a quarta vítima da sua teia.

Há aqui pormenores completamente sincronizados com a história de Catherine Tramell: da mulher loira potencialmente fatal, à localização desta personagem numa casa junto à praia, a cinematografia de Jan de Bont (diretor de fotografia em ambos os filmes); e os que não estão sincronizados, são um reverso, como um espelho, precisamente. O escritor “realista” (Verhoeven a falar de si mesmo?) passa aqui a potencial vítima, por exemplo, e o interesse homossexual numa personagem que completa um trio está também do lado dele.

Há no entanto, nesta história de paranóia sobre viúvas negras um pormenor extra face à película de 1992 que trouxe o descruzar de pernas mais famoso da história do cinema: o surgimento da religião Católica como potencial salvadora – ou simplesmente um delírio do protagonista. Há aqui também, diga-se, um plano fabuloso em “close shot” a associar desde início esta ligação da viúva negra à religião Católica, com uma aranha a imobilizar a sua presa, com uma teia feita sobre um crucifixo.

Parte do charme está precisamente nesta fusão de temas completamente bem realizada, e na maneira como Verhoeven desta vez deixa tudo mais à imaginação do espectador, entre o potencial alucinação do protagonista (alcoólico, Verhoeven faz questão de mostrar), e o que verdadeiramente se terá passado. A identificação com a personagem titular é desta vez um pouco mais vinculativa que em filmes anteriores, mas ainda assim com a distância mínima para poder não acreditar completamente nesta.

O Quarto Homem” é o filme de despedida da sua nativa Holanda – até voltar 23 anos mais tarde com “Livro Negro” (“Amor e Sangue” tem já dinheiro e atores norte-americanos), e seria difícil imaginar uma saída melhor encenada que esta.

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