Sexta-feira, 29 Março

Crónica de uma ida à Amadora BD 2015

Começou este fim de semana um dos momentos obrigatórios da cena cultural da Amadora e arredores: a 26.ª edição de um dos mais antigos festivais de Banda Desenhada em Portugal. Será possível até o dia 8 de novembro, no Fórum Luís de Camões da mesma cidade, acompanhar mais um certame com exposições, eventos, assinaturas, conversas e um espaço comercial renovado.

A BD, desde que me lembro como gente, é uma constante na minha existência. Mais do que apenas uma arte, uma leitura, um entretém, é uma “filosofia de vida“. Para o bem e para o mal. Da mesma maneira que John Cusack no filme Alta Fidelidade tenta organizar a coleção de vinis pela cronologia da sua vida, também eu posso acompanhar a minha olhando para os livros de Banda Desenhada que fui lendo (e são muitos). A BD acompanha-me nos anos, segue o meu crescimento, a minha maturação (e falta dela), fornece uma lente com que focar o mundo e, mais do que tudo isso, um conforto duradouro. Com o passar do tempo, é fácil não dar importância aos primeiros anos em que a leitura das páginas coloridas do Homem-Aranha era puro prazer infantil, em que a novidade era total deslumbramento. É na infância que residem as lembranças que seguem-nos durante a vida e que são, muitas vezes, os baluartes com que nos guiamos. Essas primeiras imagens de leitura de BD continuam, hoje em dia, a serem as mais fortes, as mais resistentes à inevitável “desmemoriação” da idade. Os pormenores das histórias e o traço do desenho continuam vivos, e cada vez que regresso a essas páginas subsistem ainda as mesmas sensações – como um cobertor velho.

Na vida adulta por vezes esquecemo-nos do poder das recordações de infância. Gosto de acreditar que tenha sido por isso que a organização deste ano da Amadora BD tenha escolhido como tema “A Criança na BD” e organizado o espaço de forma a criar um local de brincadeira e de alusão aos momentos mais felizes da nossa vida. Assim que entramos, estamos defronte de um renovado espaço de venda, com um “carrossel” no centro onde os diversos autores irão assinar livros e desenhar dedicatórias. De cada lado, aparecem dois corredores. Num deles, poderemos apreciar a principal exposição da temática deste ano, onde a organização explora o conceito de criança na BD fazendo uma retrospectiva de personagens infantis da história desta arte. Assim, surgem-nos Quim e Manecas de Stuart de Carvalhais, Max und Moritz do artista alemão Wilhelm Busch, The Katzenjammer Kids de Rudolph Dirks, entre outras tiras fundadoras da BD, sem esquecer de passar por obras mais recentes como Dennis The Menace, Malaquias, etc. Mas é no piso inferior que aparece um dos pontos altos da exposição: um amplo recreio ladeado de degraus, mesas e espaços para sentar, cheios de livros de BD prontos a serem lidos, relidos e folheados. Um exemplar de tantos e tantos volumes publicados este ano em Portugal (e que ano maravilhoso tem este sido) está disponível para miúdos e graúdos poderem, cada qual no seu estilo e maturidade, apreciar obras impar.

Existe o patamar em que o prazer que algo nos dá quando somos pequenos transforma-nos ao ponto de nele querermos trabalhar. O Festival de BD da Amadora sempre foi um forte patrocinador e incentivador de novos talentos da 9.ª Arte em Portugal. Este ano não constitui exceção mas, tendo em consideração o tema, esse apoio torna-se ainda mais relevante e sublinhado. É o caso da exposição Zona de Desconforto, título do vencedor de melhor Álbum Português em 2014, da editora Chili com Carne, e onde vários autores portugueses foram convidados a escrever e desenhar sobre um fenómeno que recentemente regressou ao quotidiano do nosso Portugal: o da emigração. Não deixa de constituir-se como uma forte chamada de atenção que, num ano em que este Festival procura arrecadar novos convertidos à arte, também sublinhe a realidade que afeta uma geração criada na esperança de que poderiam ser aquilo que quisessem, inclusive (imaginem) autores de Banda Desenhada. Nesta filosofia dos corajosos que querem e conseguem seguir os seus sonhos, temos as exposições dos trabalhos do argumentista André Coelho (vencedor do Prémio Amadora BD de Melhor Argumento em português em 2014), da ilustradora Vera Tavares (vencedora do melhor álbum Amadora BD de ilustração infantil em 2014), da BD No Presépio de Álvaro (Melhor Álbum Amadora BD de Tiras Humorísticas também em 2014) e da obra Jim del Mónaco: O Cemitério dos Elefantes (lançada recentemente).

Completando a alegoria da Criança na BD não poderia faltar a pedagogia e a amizade. No segundo corredor ao lado do espaço de venda temos a exposição de pranchas e esboços da obra A Batalha 14 de Agosto de 1385 de Pedro Massano, também vencedora de melhor desenho para álbum português no Amadora BD de 2014. No piso inferior celebram-se os 30 anos da Tertúlia de BD de Lisboa, onde amigos amantes têm se reunindo ao longo de três décadas para celebrar o amor e dedicação à Arte Suprema (no sentido mais gastronómico e alcoólico do termo).

 

Outras exposições houve (O Pugilista de Reinhard Kleist e As Serpentes de Água de Tony Sandoval) mas a mensagem era clara: aqui poderão ser criadas recordações que durarão uma vida, que ajudarão esta arte a continuar a crescer e a subsistir, porque é na conquista da criança que tem-se um adulto convertido para a vida. Mas essas recordações só serão fortes e perenes se existir muita leitura e, nesse sentido, tenho de elogiar a decisão de colocar o espaço de venda numa posição central e destacada do piso superior. Este local, iluminado e arejado, convida a ficar e a comprar, para depois poder levar para casa, para um café ou para um esplanada e passar horas, dias, semanas e uma vida inteira a ler – BD, de preferência. Os adultos do futuro agradecem.

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