Quarta-feira, 24 Abril

Cannes: e a loiça partiu-se toda

No caso de haver alguém no nosso retângulo à beira mar plantado que ainda não tenha percebido, que fique claro. Mesmo aqueles que não desfrutam do luxo de poder dispensar 6 horas em Cannes num só filme não têm qualquer duvida: A edição de 2015 do Festival de Cannes brilha sob a luz de um só artista, Miguel Gomes.

A revelação tardia da inclusão das Mil e uma noites no programa do Festival de Cannes, via Quinzena dos Realizadores, quase que passou despercebida por alguns círculos, já que foi descortinada posteriormente com nomes como Gaspar Noé, o eterno e verdadeiro enfant terrible. Mas mal começou o festival tornou-se claro que o cineasta português vinha para provocar e, a bem dizer, “partir a loiça toda“.

Dividida em 3 sessões, as 6 horas de filme, ainda não projetadas na integra, têm dado que falar. Mal acabava a primeira sessão, Gomes vivia já nas bocas de Cannes. Nos intermináveis cocktails e festas ao longo da Croisette não se fala de outra coisa, e numa secção onde apenas Jeremy Saulnier (o mesmo realizador de Ruína Azul) tem cativado um relevante número de fãs [com Green Room], um resultado final vitorioso está virtualmente garantido, apesar do cachecol benfiquista a passear-se pela marginal da cidade.


Green Room

Nos próximos dias, e na seleção oficial, Sorrentino e Villeneuve que se preparem, é que o sempre exigente público de Cannes anda de língua afiada e sedento de sangue, e agora que Gomes deu o mote na Quinzena, são poucos os que têm sobrevivido ilesos.

Gus van Sant que o diga. A sua loiça ficou em cacos, já que o seu último trabalho, The Sea of Trees, recebeu um estrondoso e sonoro coro de apupos e desde então todos se esqueceram que há uns anos atrás Elephant iniciava em Cannes um percurso de sucesso. Nanni Moretti poderá não ter sido alvo de tanta “ira”, mas as críticas e comentários insossos do seu novissímo Mia Madre provam que tal como se tinha verificado com o seu compatriota Matteo Garrone, o facto da Italia ter mais de dois representantes na competição oficial não significa sinal de vitalidade de uma indústria que ainda anda à procura do seu lugar no século XXI (mas lá está, Sorrentino vêm aí para nos provar o contrário). Apesar das varias expetativas destruídas, há, claro, muito de bom a salientar.

O cinema asiático levou umas valentes pancadas com o novo trabalho de Naomi Kawase, estranhamente comercial e manipulador, mas a normalidade regressou ontem com a entrada em cena do heroi Apichatpong Weerasethakul. O sempre idolatrado cineasta Tailândes, que com Cemetery of Splendor revisita o seu mundo repleto de fantasmas e misticismo, não aterrou em Cannes com um trabalho particularmente diferente do já dissecado vezes sem conta, mas os muitos rasgos de génio sensorial não deixam margens para dúvidas: este homem é uma carta fora do baralho, verdadeiramente ímpar. Como tal, não seria surpresa sair daqui com novos galhardetes.


Cemetery of Splendor

Seria um erro esquecer o grego Yorgos Lathimos (Canino). Veio ao festival com mais um filme avassalador, The Lobster, um trabalho mergulhado num surrealismo futurista que cativou enormes elogios. Apesar de entrar em desvantagem por ser um dos primeiros a ser projetados, ganha novo fôlego por ter provado que é possível saltar do circuito arthouse europeu para o mainstream anglosaxônico com sucesso ,mais importante ainda, mantendo a integridade.
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Por último, seguramente não há falta de revelações. De todos, talvez o mais sonoro seja o Húngaro Lazlo Nemes, cuja sua visão do holocausto em Son of Saul, apesar de tímida, tem dado que falar. Mas obviamente que neste sector é na Semana da Crítica que se têm encontrado as mais relevantes, com duas propostas deveras diferentes que prometem fazer correr muita tinta nos próximos tempos. Um desses casos é o canadiano Andrew Cividino, que com Sleeping Giant nos oferece um retrato “coming of age” brilhantemente reproduzido, com performances de tal maneira genuínas e cativantes que prometem perdurar.


Sleeping Giant

E que dizer de The Wakhan Front, de Clement Cogitore? Esta história de um grupo de soldados assombrados pelos desaparecimentos misteriosos de colegas nas montanhas afegãs, tem tanto de impressionante como de confuso. No entanto, no final é impossível não reconhecer que quem se deixar emergir por esta experiência terá dificuldades em larga-la nos dias seguintes, e mais seria um exagero pedir.

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