Quarta-feira, 24 Abril

Arte, sexo e política: a epopeia de Bernardo Bertolucci (1962-1972)

A morte do italiano Bernardo Bertolucci é uma perda tremenda para a 7ª arte. O C7nema relembra alguns momentos da carreira de um dos maiores realizadores de sempre.

Os dourados anos 60


Bertolucci e  Pier Paolo Pasolini 

Bernardo Bertolucci não poderia ter surgido em melhor época e em melhor companhia. Woody Allen já avisava no seu Meia-Noite em Paris sobre o engano das nostalgias de tempos que parecem mais luminosos que os nossos, da mesma forma que o canadiano Denys Arcand enterrava de uma forma implacável, nas suas Invasões Bárbaras, aquela época de todas as crenças e todos os “ismos“.

Mas é facto inegável, pelo menos no caso dos seus companheiros de jornada, que o cineasta cresce dentro de uma geração cinematográfica que pode rivalizar com qualquer outra, em qualquer tempo ou lugar. Antonioni, Fellini, Visconti, Pasolini e muitos outros tornaram o cinema italiano dos anos 60 num dos melhores do mundo.

E será pelo apadrinhamento de Pasolini, em dívida com o pai de Bertolucci, um poeta que o ajudou no início de carreira, que ele faria o seu primeiro filme – com apenas 21 anos. Com argumento escrito por ele, Pasolini e um colaborador habitual deste último, Sergio Citti, La Commare Secca era uma história com um fundo policial onde a investigação do assassinato de uma prostituta levava a reconstituição de vida quotidiana dos mais diferentes tipos que estavam nas redondezas onde o crime foi cometido.

Camaradas, à revolução!

Arte, sexo e política: a tríade mais poderosa da história da expressão artística, abraçada de corpo e alma por um Bertolucci que é uma espécie de equivalente ao grande Milan Kundera na literatura. E foi com um filme eminente político (na altura “até comer esparguete era um ato político“, brincou ele em entrevista recente ao jornal Sol), que ele começou a sua ascensão, com seu segundo trabalho, Antes da Revolução (1964).

Convém lembrar que estamos nos anos 60 – não há espaço para as omissões indigestas das Sofias Coppolas deste mundo. O filme é puro proselitismo – mas nunca vulgar: através do típico panfleto a anos 60, devidamente consagrado no Festival de Cannes de 1964, a obra traz um coquetel de imagens e preto-e-branco, poesias em off, burgueses repelentes e ardorosos jovens idealistas. Também o tema do incesto, recorrente no seu trabalho, aparecia através da relação do protagonista com uma tia. Deu certo: com a repercussão internacional obtida, Bertolucci estava inscrito no mapa do cinema.

Após esta primeira aclamação, a carreira do realizador passaria por uma relativa acalmia antes de ressurgir com dois filmes em 1970. Neste hiato, houve tempo para três episódios documentais para a televisão sobre a trajetória do petróleo do Médio Oriente até Europa (La Via del Petroleo, 1965), uma participação numa obra coletiva junto da sua influência do momento, Jean-Luc Godard (Amor e Raiva, 1969, onde foi responsável pelo segmento Agonia), e um experiência inspirada chamada Partner.

Estranhas histórias do absurdo

Outra das maravilhas dos anos 60 foi a literatura latino-americana, então em alta com os mestres do realismo fantástico – um género que se deleitava em introduzir o estranho e o bizarro no quotidiano. Antonioni foi buscar um dos seus maiores expoentes, Júlio Cortázar, e a partir do conto Las Babas del Diablo saiu-se com o inspiradíssimo Blow Up; Bertolucci, por sua vez, recorreu a Jorge Luís Borges, na história de Tema do Traidor e do Herói, para o seu Strategia del Ragno (Estratégia da Aranha), considerado até hoje um dos seus melhores trabalhos.

Na verdade o autor italiano deu mais do que asas à imaginação para recriar no cenário do pós-fascismo italiano uma estranhíssima e densa história de Borges de apenas cinco páginas. Passada na Irlanda do século XIX, dava conta de um movimento revolucionário às voltas com um traidor. Este vem a revelar-se o próprio herói nacional, idealizador e líder da conspiração.

Na sua transposição para o cinema, o filho do suposto herói vai parar à uma pequena cidade onde seu pai é uma lenda e um mito, lembrado como um ardente lutador antifascista que terminou morto por eles. Aos poucos o filme vai se tornando num labirinto metafórico, que une os habitantes da aldeia o seu segredo coletivo e onde o protagonista é enredado pela tal “estratégia da aranha” do título.

O último dos fascistas

O Conformista, de 1970, partia de outro grande escritor, também ele direcionado para as vicissitudes que unem sexo à política, Alberto Moravia. Bastante fiel ao texto que o inspirou, Bertolucci reconstrói a trajetória de um homem cujo desejo único e obsessivo era ser normal. Para isso ele junta-se com grande convicção às fileiras do regime fascista, que dominava a Itália antes da 2ª Guerra Mundial.

A utilizar de ironia e de uma dissecação impiedosa do regime de Mussolini, o filme centra-se num pouco simpático protagonista, vivido por Jean-Louis Trintignant, cuja existência é sublinhada como o mais completo vazio. Para além de aprofundar o seu anulamento enquanto indivíduo unindo-se a um partido, que logo na sua primeira missão pede-lhe que assassine seu antigo professor, ele providencia um casamento com uma burguesa fútil (a bela Stefania Sandrelli). Assiste-se ao protagonista dar-se conta de toda a sua miserabilidade pessoal quando apaixona-se pela mulher (Dominique Sanda) do homem que tem de matar a sangue-frio.

Lançado numa altura ainda explosiva e cuja première ocorreu no Festival de Berlim de 1970, o filme irritou a direita, por razões óbvias, mas também a esquerda, que esperava um panfleto mais incisivo e não um dúbio vai-e-vem no tempo e nas interpretações morais a um protagonista desagradável. O que ninguém criticou foi a soberba reconstrução da época, em mais um trabalho elogiado de Vitorio Storaro, que havia iniciado com Strategia del Ragno uma profícua colaboração com o realizador.

Anatomia de um escândalo

Como que a dar uma espécie de adeus aos anos 60, Bertolucci achou que já era hora de deixar de fazer filmes para os amigos, conforme disse na citada entrevista ao Sol, e tentar realmente comunicar alguma coisa. Dificilmente poderia ter imaginado que o faria para tanta gente e levar as controvérsias ao nível que elas atingiram.

Olhando retrospetivamente, no entanto, e já distante dos padrões morais de quarenta anos atrás, O Último Tango em Paris é tão-somente o seu primeiro filme a sobreviver bem ao tempo: ainda hoje uma belíssima Paris serve como pano de fundo a uma impressionante e intensa história de desintegração pessoal. Nela um homem amargurado pelo suicídio da mulher (Marlon Brando) encontra fortuitamente uma jovem (Maria Schneider) num apartamento. Desprovidos de identidade, ambos atiram-se a um violento jogo sexual repleto de implicações nas suas histórias pessoais.

Parece óbvio que as multidões que fizeram filas de duas horas para vê-lo não estavam interessadas em desesperados dilemas existenciais. Além da nudez de Maria Schneider e a famosa “cena da manteiga“, quando Brando pratica sexo anal sem avisar a sua parceira (nem a atriz, que não estava preparada para a simulação e chorava a sério por se sentir verdadeiramente violada).

Também não é difícil imaginar que as ligas da moral a fazer protestos histéricos às portas dos cinemas ajudaram bastante a publicitar aquilo que queriam combater – como tantas vezes ocorre. Proibição em vários países, polémicas acirradas, protestos conservadores foram contrabalançadas por um sucesso de público substancial, para além de nomeações aos Oscars para Brando e Bertolucci.

Mas o fogo cruzado não envolveu só a opinião pública: o ex-padrinho Pasolini, por exemplo, ficou furioso com o filme e disse que ele era uma “traição ao cinema”. No outro lado do Atlântico, Robert Altman disse que a sua carreira se tornava insignificante diante de tal obra, ao passo que uma das mais notórias e ferozes críticas da imprensa norte-americana, Pauline Kael, disse que este era o filme pelo qual se estava à espera durante muito tempo.

“Pobre Maria Schneider”

Já Maria Schneider nunca deixou de se lamentar por aquilo tudo, tornando-se uma feminista ferrenha e desaparecendo do mapa como atriz – já que depois deste filme só fez mais um único de relevo – Profissão: Reporter, de Antonioni. Ao longo dos anos, fez sempre questão de reiterar o seu ódio a Brando e ao cineasta.

A atriz morreu sem conhecer o arrependimento do cineasta, que há tempos reconheceu a sua culpa: “Pobre Maria Schneider. Não tive ocasião de lhe pedir desculpas. Ela tinha 19 anos e nunca tinha atuado antes. Às vezes, durante as filmagens, eu não lhe dizia o que ia acontecer a seguir porque eu sabia que assim ela atuaria melhor“, disse.

Dominique Sanda, que havia trabalhado com o cineasta em O Conformista (e retornará em 1900), bem podia ter salvado Maria Schneider do suplício – e ela ficaria o resto da vida numa obscuridade sem sobressaltos. Ocorre que Sanda estava grávida – uma desistência acompanhada pela de Jean-Louis Trintignant, que não gostou do que leu. E aí foi a vez de Brando entrar e, como quase tudo em que tocou nos anos 70, para não mais ser esquecido. Por fim, destaque ainda para a banda sonora que consagrou o argentino Gato Barbieri e até lhe rendeu um Grammy.

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