Terça-feira, 16 Abril

Entrevista a Ivo Ferreira, o realizador de «Cartas da Guerra»

Tudo começou com correspondência. As cartas escritas pelo jovem alferes António Lobo Antunes para a sua primeira mulher, tornaram-se com o passar dos anos mais do que um romance de longa-distância, num olhar intimista e desesperante duma realidade deslocada, porém, certa para muitos dos jovens portugueses de ’68. As Cartas da Guerra ganharam notoriedade como livro, desvendando um escritor em busca de si mesmo no mais austero dos cenários, agora é convertido num filme com tamanha dimensão politica e sobretudo existencialista. Ivo Ferreira foi o mentor deste bélico português onde a verdadeira guerra reside no interior de cada ser. O C7nema falou com o realizador sobre a sua terceira longa-metragem, um “parto” difícil que resultou num filme impar da nossa cinematografia.

Gostaria antes de mais, perguntar o porquê de António Lobo Antunes e o porquê deste livro concretamente?

O porquê deste livro? Bem, porque quando o li tive a consciência que estava perante de material fortíssimo, quer em termos históricos (é em todo o caso um documento), topográficos, estamos a falar de um melhores escritores de sempre da Língua Portuguesa … e do Mundo, e é composto por uma magnifica história de amor. Não consigo responder exatamente o porquê de António Lobo Antunes e deste mesmo livro, mas é fantástico este acumular de cartas, organizadas pelas suas filhas, tende em conta que eram cartas guardadas pelo autor enquanto alferes miliciano. Cartas que trocava com a sua mulher, que na altura estava grávida da primeira filha. Ainda mais fantástico é a forma como ele olha e descreve as pessoas em seu redor, esses homens que estão a sair do seu país, “empurrados” totalmente para aquela guerra absurda e fora de tempo. 

Fala-se de complicações na produção. O filme demorou bastante tempo a ser concretizado, por algum motivo?

Houve complicações porque o Estado faliu e o ICA não tinha dinheiro. Época, Guerra e África são três componentes que afastam qualquer produtor entusiasmado, e quando começou-se a construir a parte financeira do projeto, a parte portuguesa não estava concretizada, isso não só bloqueou o filme, como também repugnou a tentativa de coprodução. Porque Cartas da Guerra era por si um filme com interesse em ser internacionalizado. Mais tarde quando veio o dinheiro tivemos a consciência que se íamos filmar em África iríamos gastar todo o dinheiro do “bolo“, logo na rodagem. Estávamos todos falidos, então lancei-me numa jogada arriscada – e se eu terminar o filme?

Um facto é que iniciamos a rodagem em Abril, começamos a montar de imediato, fomos a Veneza, pelo qual fomos selecionados pelo European Gap-Financing Market para participamos num fórum, e em dois dias conseguimos financiamento para o resto do filme. O filme demorou muito tempo, sim, mas não foi porque andamos a “empatar“, não sei se é recorde mundial, mas desde o momento em que começou a rodagem até à Competição em Berlim, foi bastante rápido.

Em Berlim, Cartas da Guerra foi constantemente apontado como um dos potenciais candidatos ao Urso de Ouro. Como se sentiu perante tais aclamações?

Só facto de estar em competição num dos melhores festivais do Mundo já é fantástico, não com isto seja falta de ambição mas é por si um motivo para estar satisfeito com o filme.

É verdade que os atores foram submetidos a uma “recruta de preparação“?

Algo que temos que ter em conta, visto que vamos ter atores a desempenhar soldados num cenário de Guerra, é garantir que os atores tenham ou conheçam formação militar. Muitos dos atores já nem se lembravam dos seus tempos militares, outros nem sequer foram à tropa, então teria que haver rigor nesta encenação. Os atores teriam que, por exemplo, saber como pegar uma arma ou até mesmo subir um Unimog [designação de uma série de caminhões off-road produzida pela Mercedes-Benz, utilizados sobretudo em serviço militar]. Aliás, as primeiras imagens dos nossos atores fardados e munidos com a G3 a tentarem subir pela primeira vez um Unimog, era realmente um filme muito cómico. Eles também teriam que experienciar a “pressão“, nesse aspeto os Comandos foram “simpáticos“, não para os recrutas como é óbvio, porque era preciso que eles sentissem a violência, quer física e psicológica, como preparação para uma eventual guerra.

As Forças Armadas Portuguesas tiveram um importante papel na rodagem do filme?

Sim, portuguesas como também angolanas. Tivemos sobretudo um apoio imenso das Forças Armadas Angolanas. Esta ajuda não foi preciosa, nem dispensável, foi completamente impossível fazer este filme sem o apoio deles. Eles proporcionaram-nos tudo, desde logística a armamento. Falamos também em helicópteros, Unimog, Kamazes que foram emprestados pelo exército para transportar mais de 40 toneladas de material para a construção do aquartelamento. Nós construímos aquilo do meio do nada, tivemos até que reconstruir a ponte que dava acesso ao aquartelamento.

No fundo, o Ivo Ferreira filmou um filme de guerra, cuja guerra está ausente.

Ausente no pensamento deles. Aquilo é uma guerra pouco convencional, é a guerra do “toque e foge“, os aquartelamentos estavam perdidos no meio do nada, supostamente eram posições estratégicas, uma estratégia um pouco questionável portanto, eles estavam a tentar defender a Zâmbia. Aquilo é que era o quotidiano daqueles soldados, o afastamento, o isolamento, era essas as verdadeiras guerra daqueles homens. No filme, os inimigos são eles próprios. 

Em determinada cena, enquanto os soldados se limpam numa casa de banho de campanha é possível visualizar um retrato de Salazar numa pia. Tal imagem é uma provocação ou somente uma demonstração do desgaste psicológico e da consciência politica destes homens após meses no aquartelamento?

Os soldados estavam a viver uma altura difícil. Encontravam-se a lutar numa guerra moribunda, uma guerra falida, uma guerra “estúpida” fora de época, simplesmente porque a ditadura não permitiu uma fácil descolonização. Aliás, em 68 (o ano em que decorre o filme) não havia qualquer motivo para persistir em colónias, a Guerra da Argélia já terminou há anos.  Essa imagem só esclarece a segunda fase desta estadia, o facto dos soldados encararem o fascismo, essa ditadura, como o verdadeiro inimigo. Obviamente que mais para a frente o inimigo acaba por ser eles próprios, ou seja, o pensamento deles passa a ser “e se sobrevivermos“. 

Uma natureza entre os soldados, algo que está descrito no filme, é que estes sonham regressas à vida civil, porém, não sabem concretamente o que fazer com esse retorno.

O que sei, é que os suicídios ocorridos durante esse período, não aconteciam durante a Guerra propriamente dita, mas sim, no regresso a casa. Estes aconteciam antes de voltarem a Portugal, derivado ao facto deles terem mudado tanto, mas tanto, que não sabiam mais como receber a dita “vida normal“. Por isso sim, esse é o grande drama da personagem principal.

Mas nesse drama é também acrescentado, como refere o próprio Lobo Antunes, com um aparecimento de uma consciência politica.

Sim, ele próprio diz isso nas suas cartas: “O meu instinto conservador e comodista tem evoluído muito, e o ponteiro desloca-se, dia a dia, para a esquerda: não posso continuar a viver como o tenho feito até aqui.” Essa consciência politica também foi alimentada com o constante contacto com um Capitão, que foi o Capitão Ernesto Melo Antunes, que no filme é o seu parceiro de xadrez.

Quanto a novos projetos?

Vou começar a filmar uma nova longa ainda este ano, na China-Macau, intitulado de “Hotel Império“, uma coprodução portuguesa com atores portugueses e chineses.

Também, estou a preparar um outro trabalho, um filme pesado com um orçamento de igual adjetivo, sobre um tema idêntico a este da Guerra Colonial. Este filme, que terá data para 2018, será sobre as FP25, as Forças Populares 25 de Abril, uma organização terrorista portuguesa.

Perguntam-me constantemente, “mas para quê? Se os que lá tiveram, os que viveram isso não querem falar sobre o assunto, porque raio você quer ?

Como nasceu essa necessidade de falar daquilo que ninguém quer falar? Acredita que temas como este [Guerra Colonial] devem ser abordados para as novas gerações, por exemplo?

Sou fascinado por buracos negros, baús fechados e quartos privados e se sinto que há um assunto interdito, tabu, quero mais que tudo “falar” sobre ele. É muito estranho como é que na nossa História recente, os nossos livros de História passam do Estado Novo com duas ou três imagens, tocamos na Guerra Colonial com duas ou três linhas, passamos por uns indivíduos com cravos nas mãos e pronto chegamos a uma bandeira azul e umas estrelas. É estranho como uma tragédia do século XX não é falada, nem estudada. Claro, é olhando o passado que poderemos preparar o futuro.

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